INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MONARQUIA


INSTITUIÇÃO DA MONARQUIA NO POVO ELEITO


Quando Moisés levou o povo hebreu para a Terra Prometida, nomeou alguns oficiais seus auxiliares para ajudá-lo a administrar o Governo do povo. Eram os Juizes e sua missão consistia em libertar o povo da opressão de seus inimigos. Com o tempo, se constituíram em governos temporários, escolhidos pelo próprio Deus para representá-Lo perante a nação. Governaram eles desde a morte de Josué até Saul, primeiro rei de Israel. Foram os seguintes: Otoniel, Aod, Débora, Barac, Gedeão (Abimelec), Tola, Jair, Jefté, Abesan, Aialon, Abdon, Heli (Sumo Sacerdote), Sansão e Samuel.
Mas os Juízes não deveriam ser para sempre. Um dia o povo deveria escolher outra forma de Governo, embora parecia ser esta a preferida por Deus. Moisés havia ele mesmo aconselhado: “Quando tiveres entrado na terra, que o Senhor, teu Deus, te dará, e tiveres tomado posse dela, e nela habitares e disseres: Eu constituirei um rei sobre mim, como o têm todas as nações em roda, elegerás aquele que o Senhor, teu Deus, tiver escolhido do número de teus irmãos” (Deut 17, 14-15). Em seguida são dados conselhos e como deverá se comportar o rei do povo eleito, inclusive com a obrigação de mandar escrever um livro Deuteronômio semelhante ao que Moisés fez. Parece que este texto deve ter influenciado o povo de Israel no momento em que se dirigiram a Samuel pedindo um rei, e que Deus não ficou satisfeito como se vê abaixo. Talvez o mais perfeito para o povo eleito seria o sistema de Juízes, ou mesmo de uma monarquia teocrática, coisa que o povo daquele tempo talvez não entendesse como seria. Se Deus os tinha guiado até ali, porque não pedir a Deus que continuasse sendo, por exemplo, seu Rei? Não seria a proclamação da realeza divina?
O Profeta Samuel o foi último dos Juizes de Israel: “Samuel julgou Israel durante todos os dias de sua vida. E ia todos os anos dando volta a Betel e a Gálgala, e a Masfat, e administrava justiça a Israel nos sobreditos lugares. Depois voltava para Ramata; porque estava ali a sua casa, e ali julgava Israel; edificou também ali um altar ao Senhor”. (I Sam 7, 15-17). Tendo ficado velho, nomeia seus filhos como seus sucessores, mas o governo de seus filhos não é agradável a Deus, pois deixaram-se arrastar pela avareza, receberam presentes e perverteram a justiça.


Recusa da Realeza Divina


O povo então pede a Deus um rei, alegando que todos os outros povos têm seu rei e que Israel deveria ter o seu também: “Tendo-se, pois, juntado todos os anciãos de Israel, foram ter com Samuel, e disseram-lhe: Bem vês que estás velho e que teus filhos não seguem as tuas pegadas; constitui-nos pois um rei que nos julgue, como o têm todas as nações”. Apesar de Deus não ficar satisfeito, pois queria governar Ele mesmo o seu povo, diz a Samuel que o pedido deve ser atendido e que ele deverá procurar ungir um rei para Israel: “Ouve a voz do povo em tudo o que te dizem, porque não é a ti que eles rejeitaram, mas a mim para eu não reinar sobre eles. É assim que eles sempre têm feito desde o dia em que os tirei do Egito até hoje; assim como me abandonaram a mim, e serviam a deuses estranhos, assim também fizeram a ti” (I Sam 8, 4-9).
Há muito tempo que os hebreus vinham querendo um rei meramente terreno. Gedeão é convidado “por todos os homens de Israel” para ser rei, mas recusa-se dizendo que “o Senhor terá domínio sobre vós” (Juízes 8, 22-23). Abimelec se autoproclama rei de Israel, reina ainda durante 3 anos, mas não é aceito pelo povo que se revolta contra ele (Juízes 9,1). É assim que no tempo de Samuel se cocretiza a recusa da realeza diivina.
Samuel honra Saul que é ungido rei: “Samuel tomou um pequeno vaso de óleo, derramou-o sobre a cabeça de Saul, beijou-o e disse: Eis que o Senhor te ungiu por príncipe sobre a sua herança, e tu livrarás o seu povo das mãos dos seus inimigos, que o cercam”. Era necessário porém que o poder real fosse confirmado, devendo o rei ser aclamado pelo povo e ratificado por Deus através das vitórias dadas aos inimigos: “Este será para ti o sinal de que Deus te ungiu príncipe” (I Sam 10, 1-1). Com isto é iniciada a institucionalização da Monarquia no povo eleito, seguindo princípios orgânicos e universais. Entre outros povos os reis eram tiranos que impunham pela força o seu poder. Entre o povo eleito o rei deveria reinar de forma diferente. Teria que ser ungido pelo Profeta, depois de escolhido pelo próprio Deus, e logo após deveria ser aclamado pelo povo. Já havia um ungido, mas faltava que fosse aclamado e seu Governo confirmado pelo Senhor através das vitórias sobre os inimigos. A primeira condição foi cumprida: Saul é aclamado pelo povo como rei de Israel e Samuel abdica do ofício de Juiz para deixar Saul reinar mais à vontade. Deus disse ao povo: “Agora, pois, aí tendes o vosso rei, que escolhestes e pedistes; eis que o Senhor vos deu um rei. Se temerdes o Senhor, e o servirdes, e ouvirdes a sua voz, e não irritardes o rosto do Senhor, tanto vós como o rei que vos governa, seguireis o Senhor vosso Deus. Se, porém, não ouvirdes a voz do Senhor e contrariardes as suas palavras, a mão do Senhor será sobre vós, como foi sobre vossos pais” (I Sam 12, 13-15). Faltava, porém, Deus confirmar o poder dado a Saul fazendo-o vitorioso sobre os inimigos de Israel.
Mas Saul não corresponde e termina prevaricando. Acontece a primeira desobediência, começa a trair sua missão no momento em que em vez de partir para a luta contra os filisteus como fizera vitoriosamente o seu filho Jônatas, aguarda covardemente a vinda de Samuel, quando estava sendo acossado pelo inimigo. O povo israelita perde a luta. Samuel chega e recrimina Saul: “Procedeste nesciamente, e não observaste as ordens que te deu o teu Deus. Se não tivesses feito isto, já desde agora teria o Senhor confirmado para sempre o teu reino sobre Israel; porém o teu reino não subsistirá para o futuro” (I Sam 13, 12-14). Deus não confirma o reinado de Saul com as necessárias vitórias sobre os inimigos, embora o povo já o tivesse aclamado.
Segunda desobediência de Saul a Deus: vence os amalecitas, mas poupa seu rei Agag e o melhor dos rebanhos. Reprovação pública de Deus: a obediência a Deus vale mais do que Lhe oferecer holocaustos, pois o Senhor havia ordenado que fosse destruído tudo que era dos inimigos amalecitas e Saul, com usura, havia conservado os rebanhos para si, justificando-se que era para oferecer em holocaustos pela vitória alcançada. Samuel, implacável com o inimigo, toma da espada e faz em pedaços o rei Agag e, voltando para sua casa, chorava Saul porque o Senhor se tinha arrependido de o ter constituído rei sobre Israel. Saul vai resvalando cada vez mais no caminho do mal.

Davi ungido rei, porém ainda não governa


Samuel procura então um outro para ser ungido rei no lugar de Saul, a pedido do próprio Deus, sendo Davi o escolhido: “Tomou, pois, Samuel, o chifre com óleo e o ungiu no meio de seus irmãos. Daquele dia em diante comunicou-se o espírito do Senhor a Davi, e Samuel, levantando-se, partiu para Ramata” (I Sam 16, 13). Novo rei ungido, era isto suficiente para que Davi reinasse? Não. Deus queria que fossem respeitados os mesmos princípios da nomeação de Saul, e ainda que se aguardasse o consentimento deste último aos desígnios divinos. Davi deveria ser aclamado pelo povo e corresponder aos desígnios divinos para ser confirmado no cargo. Enquanto isto, Saul toma conhecimento do fato e, enciumado, tornou-se possuído de um espírito maligno. Primeiro, pecou por desobediência, depois veio a avareza, e agora virão ciúmes, invejas e ódios mortais.
Quando ouvia o som harmonioso da harpa o espírito maligno saía de Saul. Mandaram chamar Davi, que tocava harpa magnificamente bem, a fim de que tocasse para o rei Saul e assim fosse expulso o espírito maligno que o atormentava : “Eis que vi um dos filhos de Isaí de Belém que sabe tocar e é dotado de grande força, homem guerreiro, prudente nas palavras e de gentil presença; e o Senhor é com ele” (I Sam 16, 14-21). Assim, Deus suscita um meio de Saul conhecer Davi, sua bondade, sua generosidade, seu espírito de nobreza, para que o amasse e o acatasse como rei de Israel em seu lugar.
O Senhor faz mais ainda: dota Davi de grande habilidade que o faz derrotar o gigante Golias, ocasionando não só uma derrota dos filisteus como a vergonha do exército de Israel. Isto deveria ser motivo para que Saul o amasse, mas não foi o que se deu.

Popularidade de Davi e inveja de Saul


Saul começa odiar Davi com inveja da graça fraterna. O povo cantava “Saul matou mil e Davi dez mil”, o que já era um início de uma aclamação, fazendo com que aumentasse mais ainda a terrível inveja de Saul, pois o mesmo não aceitava que se prestasse um culto pessoal a Davi, que o desejava para si mesmo. Como se vê Davi era querido pelo povo, que o aclamava quando andava pela rua. Mas apesar de Davi já ter sido ungido por Samuel ainda não reinava pois faltava ser aclamado rei pelo povo. Além do mais, Saul reinava com a aceitação de todos.
Sabendo que Davi havia sido ungido por Samuel e que Deus o queria como rei, a partir de então Saul começou a conjurar a morte de Davi. Para tanto procurou reunir seus provectos amigos e os instruiu que matassem o jovem guerreiro. As primeiras tentativas de morte foram feitas pelo próprio Saul, mas Davi se desviava de sua lança. Davi era prudente e amado pelo povo: “Davi portava-se com maior prudência do que todos os oficiais de Saul, e o seu nome tornou-se muito célebre” (I Sam 18, 30). Esta benquerência do povo era mais motivo de inveja e ódio por parte de Saul.
Saul tenta perder Davi de outras formas: procurando casá-lo com uma de suas filhas e mandando-o guerrear contra os filisteus, mas sempre via que o Senhor estava com Davi. Por exemplo, havia exigido, para tornar-se seu genro, que ele trouxesse 100 prepúcios dos filisteus e Davi trouxe 200 (I Sam 18, 27). A inveja e o ódio aumentam cada vez mais (I Sam 18, 29).
O próprio filho de Saul, Jônatas, amava Davi e o defendia contra seu pai: “Não peques, ó rei, contra Davi, teu servo, porque ele não pecou contra ti e os teus serviços foram-te muito úteis. Ele expôs a sua vida ao perigo, matou o filisteu, e o Senhor salvou por meio dele todo o Israel por um modo maravilhoso; tu viste e te alegraste. Por que queres, pois, pecar contra um sangue inocente, matando Davi, que não tem culpa?” (I Sam 19, 4-5). Como ocorreu várias outras vezes, Saul se arrepende, mas logo depois recai sobre ele os espíritos malignos e volta a tentar matar Davi.
Uma das tentativas de morte mostram bem que Saul estava possuído de um espírito maligno: “E o espírito maligno mandado pelo Senhor, apoderou-se de Saul. Estava ele sentado em sua casa e tinha uma lança na mão; e Davi tocava harpa com a sua mão. Saul tentou atravessar Davi com a lança contra a parede, mas Davi desviou-se da presença de Saul; a lança, sem o ofender, foi dar na parede. Davi fugiu e salvou-se aquela noite” (I Sam 19, 9-10). Observemos que desta vez a exorcizante música da harpa de Davi não conseguiu expulsar o espírito maligno. Seguindo uma explicação dada por Nosso Senhor no Evangelho, quando um espírito maligno é expulso e consegue voltar a uma alma e encontra-a receptiva, traz ela mais sete espíritos mais imundos do que o primeiro. Talvez por esta razão a harpa de Davi não conseguia mais expulsar o espírito maligno que atormentava Saul. E por isto e por não querer lutar contra um ungido de Deus, Davi prefere fugir.
Jônatas, filho de Saul, que era amigo de Davi, procura reconciliar novamente seu pai com Davi, mas obtém do pai apenas mais um acesso de fúria: “Filho de má mulher, não sei eu porventura que amas o filho de Isaí, para confusão tua e para confusão de tua indigna mãe? Porquanto, em todo o tempo em que o filho de Isaí viver na terra, nunca estarás seguro, nem tu nem o teu reino. Por isso manda buscá-lo e traze-mo à minha presença, porque é um filho da morte” (I Sam 20, 30-31). Observemos que o ódio não permite que Saul designe Davi pelo nome, mas como “filho de Isaí”, odiando também o próprio filho por ter benquerência pelo seu inimigo. Em seguida Saul pega na lança tentando matar o próprio filho, cheio de ódio incontido. Jônatas corre e vai avisar a Davi para que fuja para longe de seu pai que procurava-o para matá-lo.


Saul persegue Davi para o matar


Davi foge e procura se refugiar na cidade de Nobe, com a proteção do sacerdote Aquimelec. Nesta ocasião, Davi se revela também está puro do contato com mulheres, pois a cidade de Nobe era uma das reservadas à morada dos sacerdotes e à pureza do culto divino. “Respondendo, o sacerdote a Davi, disse-lhe: Eu não tenho à mão pães vulgares mas somente o pão santo; todavia eu tos darei, se os teus servos estão limpos, principalmente no que toca a mulheres. Davi respondeu ao sacerdote e disse-lhe: No tocante a mulheres, certamente temo-nos abstido desde ontem ou anteontem, depois que partimos e os vasos dos meus criados conservam-se puros” (I Sam 21, 4-5). Como Davi estivesse desarmado, o sacerdote lhe deu a espada que pertenceu ao gigante Golias. Para evitar confronto com Saul, Davi foge para mais longe e vai se refugiar entre os moabitas.
Saul manda matar o sacerdote Aquimelec que deu guarida a Davi e todos os que o acompanhavam, num total de 85 homens, todos sacerdotes, além de ter mandado matar os da cidade onde Davi se refugiara, “Nobe, cidade sacerdotal, (matando) homens e mulheres, crianças e meninos de leite, e passou também ao fio da espada bois, jumentos e ovelhas” (I Sam 22,19). É curioso que este zelo ele não tenha demonstrado contra os amalecitas e o rei Agag, morto pelas mãos de Samuel.
Davi foge de uma cidade chamada Ceila, avisado pelo próprio Deus, para não morrer nas mãos de Saul, que o persegue até pelos desertos. E chega quase a encontrá-lo com seus homens no deserto de Zif. Novamente, Jônatas se mostra amigo de Davi e vai avisá-lo, dizendo: “Não temas, porque não te há de encontrar a mão de Saul, meu pai. Tu reinarás sobre Israel e eu serei o segundo depois de ti. Até mesmo Saul, meu pai, sabe isto”(I Sam 23, 17). Mas Deus tinha outros desígnios e Saul teve que largar sua perseguição porque o país estava sendo invadido pelos filisteus novamente.

Grande nobreza de alma


Grandeza de alma de Davi: perseguido no deserto de Engadi tem ocasião propícia para matar Saul. Com 3 mil homens, Saul foi em sua perseguição, procurando-o até pelos rochedos mais escarpados . Chegando a um local, Saul entrou numa caverna para fazer suas necessidades. No interior da mesma caverna estava escondido Davi e seus homens. “Os servos de Davi disseram-lhe: Eis o dia, do qual o Senhor te disse: Eu te entregarei o teu inimigo, para fazeres dele o que te parecer. Então Davi levantou-se e cortou muito de mansinho a orla do manto de Saul. Logo depois o coração de Davi bateu-lhe, porque tinha cortado a orla do manto de Saul. E disse para a sua gente: Deus me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, ao ungido do Senhor, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor . Com estas palavras Davi conteve a sua gente, e não permitiu que se lançassem sobre Saul. E Saul saindo da caverna, prosseguia o seu caminho” (I Sam 24, 7-8). Davi foi atrás de Saul e lhe gritou “ó rei, meu senhor!”. Saul olhou para trás e viu Davi inclinando-se até o chão, fazendo uma profunda reverência ao seu rei e dizendo: “Por que dás tu ouvidos às palavras dos que te dizem: Davi procura fazer-te mal? Eis que viste hoje com os teus olhos que o Senhor te entregou nas minhas mãos na caverna, e eu tive o pensamento de te matar, mas não o quis fazer, porque disse: Não estenderei a mão contra o meu senhor, porque é o ungido do Senhor. Antes vê, meu pai, e reconhece a orla do teu manto na minha mão; pois, cortando a extremidade do teu manto, não quis estender a minha mão contra ti” (I Sam 24-11) e declarando: “A quem persegues tu, ó rei de Israel? A quem persegues?... O Senhor seja juiz, e julgue entre mim e ti, examine e julgue a minha causa, e me livre da tua mão”. Saul, hipocritamente, chora e se diz arrependido, reconhecendo a magnanimidade de Davi. E continua a perseguição...


Exemplo de servidão voluntária, prefigura da “Sagrada Escravidão”?


Primeiras referências bíblicas ao Monte Carmelo, onde Davi se encontra com a que seria uma de suas esposas, Abigail, exemplo de prefigura da servidão voluntária. Este espírito de servidão ou escravidão voluntária, comum entre bons israelitas, ocasionou episódios muito admiráveis, como por exemplo o de Abigail, citado em Samuel I 25, 23-35. Davi mandara pedir ajuda a Nabal, riquíssimo fazendeiro que tosquiava ovelhas ao pé do Monte Carmelo. Em resposta o avarento judeu diz: Quem é Davi? E quem é o filho de Isaí? Hoje são numerosos os servos que fogem aos seus senhores. Pegarei eu portanto no meu pão, na minha água e na carne dos animais que matei para os que tosquiam minhas ovelhas, e dá-lo-ei a homens que não sei donde são? Esta resposta era um insulto a Davi, pois o mesmo protegera aquele homem na guerra, Nabal devia portanto a Davi pelo menos reconhecimento pelo que bem que lhe fizera. Irado, Davi se aprestava para ir com seus homens matar Nabal com todos os viventes que com ele estavam, inclusive os que “urinam na parede”, quando se encontra com Abigail, mulher de Nabal:
“Mas Abigail, tendo visto Davi, apressou-se, desceu do jumento, prostrou-se diante de Davi, sobre o seu rosto, fez-lhe uma profunda reverência, lançou-se a seus pés e disse: Sobre mim caia, meu senhor, esta iniquidade; peço-te que permitas à tua escrava falar aos teus ouvidos, e ouve as palavras da tua serva.” Davi havia sido ungido por Samuel, mas ainda não reinava, pois Saul ainda era vivo. Abigail, que morava no Monte Carmelo, sabia no entanto que Davi havia sido ungido. Continuando: “Não faças caso, meu senhor e meu rei, da injustiça de Nabal, porque, como o denota o seu próprio nome, é um insensato, e a loucura está com ele; mas eu, tua escrava, não vi os criados que tu, meu senhor, enviaste”. Continuando seu discurso, Abigal chama Davi de “meu senhor” e se declara sua escrava várias vezes, oferecendo-lhe dádivas para seus homens que trazia em seus jumentos: 200 pães, dois odres de vinho, 5 carneiros cozidos, 5 medidas de farinha, 100 cachos de uvas passas, 200 pastas de figo seco, etc. Logo depois, acrescenta ela profeticamente: “Perdoa à tua escrava a iniquidade, porque certissimamente o Senhor estabelecerá em ti, meu senhor, uma casa estável, porque tu, meu senhor, combates pelo Senhor; não se encontre, pois, culpa em ti durante todos os dias da tua vida”. E mais adiante: “Quando, pois, o Senhor te tiver feito, meu senhor, todos os bens que ele predisse de ti, e te tiver constituído general sobre Israel, não terás no coração este pesar, nem este remorso, meu senhor, de ter derramado sangue inocente, ou de te teres vingado por ti mesmo:. Profetizando que se tornaria, após a viuvez, esposa de Davi, declara: “e, quando o Senhor tiver feito bem ao meu senhor, lembrar-te-ás da tua escrava”.
Em resposta, Davi diz a Abigail: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que te enviou hoje ao meu encontro, bendita a tua palavra, e bendita és tu, que me impediste hoje de derramar sangue, e vingar-me pela minha mão. Doutro modo juro pelo Senhor, Deus de Israel, que me impediu que te não fizesse mal: Se tu não viesses logo ao meu encontro, não teria ficado nada com vida desde hoje até amanhã em casa de Nabal, nem mesmo um dos que urinam à parede. Davi, pois, aceitou da sua mão tudo o que lhe tinha trazido e disse-lhe: Vai em paz para tua casa; eis que ouvi a tua voz e honrei a tua presença”.
Em outra oportunidade foram dizer a Saul onde Davi se encontrava, na colina de Aquila, do deserto de Zif. Mais uma vez Saul saiu em sua perseguição, arregimentando 3 mil homens consigo. Davi, muito esperto, mandou espiões para saber onde se encontrava Saul. Levantou-se, então, caladamente e foi ao lugar onde ele estava acampado, pegou alguns consigo e foi até a tenda de Saul e lá o encontraram deitado e dormindo, juntamente com o seu general. Novo encontro entre Saul e Davi, nova manifestação de magnanimidade deste último: poderia novamente ter matado Saul, mas não o faz alegando que Saul era um ungido do Senhor. “Abisai disse a Davi: Deus entregou-te hoje nas mãos teu inimigo; agora, pois, eu o pregarei à terra com a lança dum só golpe e não será necessário o segundo. Mas Davi disse a Abisai: Não o mates, pois quem estenderá a sua mão contra o ungido do Senhor e será inocente?” No entanto, mandou que pegasse a lança de Saul que estava à sua cabeceira e o copo de água, e foram-se sem que ninguém os visse. Estando distante do acampamento bradou bem alto chamando o general de Saul, Abner, censurando-o em seguida: “Como, pois, não guardaste o rei, teu senhor? Porque alguém do povo entrou aí para matar o rei, teu senhor”. Saul reconhece a voz de Davi, que o recrimina novamente: “Por que motivo persegue o meu senhor o seu servo? Que fiz eu? Ou que maldade está na minha mão? “ Após ouvir o discurso de Davi, Saul se manifesta hipocritamente arrependido: “Pequei, volta, meu filho Davi, porque não te tornarei a fazer mal daqui em diante”. Mas Davi não se deixa levar por esta declaração fingida e diz: “Eis a lança do rei: venha cá um de seus criados e leve-a. O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e fidelidade, porque o Senhor entregou-te hoje na minha mão, e eu não quis estender a minha mão contra o ungido do Senhor. E, assim como a tua vida foi hoje preciosa aos meus olhos, assim a minha seja preciosa aos olhos do Senhor, e ele me livre de toda tribulação”(I Sam 26, 9-25).


Saul, “prefigura” da “vidência” espírita?


O Profeta Samuel havia morrido. Nas constantes guerras de Israel, ele era sempre consultado por Saul. Perante o exército dos filisteus, Saul teve medo pois havia se tornado um covarde. Consultou a Deus, mas o Senhor não lhe respondeu nem por sonhos. Agora, sem ter Samuel vivo e sem querer consultar Davi, Saul termina por aderir ao agnosticismo e ao espiritismo, consultando a uma vidente necromante, espécie de espírita daqueles tempos . O Profeta Samuel foi evocado pela necromante, que aparece a Saul censurando-o rigorosamente: “Por que me inquietas, fazendo-me vir cá?” Saul tenta explicar a situação apertada perante os filisteus, mas Samuel responde: “Para que me interrogas, quando o Senhor se afastou de ti e passou para o teu rival? Porque o Senhor te tratará como eu te disse da sua parte, arrancará o teu reinado da tua mão e o dará a Davi, teu parente” Disse também que Deus entregará Israel nas mãos dos inimigos filisteus. Este seria talvez o castigo pelo fato do povo de Israel não haver proclamado ainda Davi como seu rei e destronado a Saul. “E Imediatamente Saul caiu estendido por terra, porque se espantou às palavras de Samuel...” (I Sam 28, 8-20).
Saul havia chegado ao máximo da apostasia e recusa de Deus com a consulta feita à necromante. Estava pois próxima a sua derrota total e morte, a fim de que Davi pudesse reinar. Os filisteus combatiam contra os israelitas, que fugiam e caíam mortos aos montes nas mãos inimigas. Numa das investidas foi morto Jônatas, filho de Saul e amigo de Davi, mas que continuava lutando ao lado do pai. Outros filhos de Saul foram mortos em combate, ficando todo o peso da luta contra o rei. Tendo ficado gravemente ferido, Saul pede ao seu escudeiro que o mate com sua espada: “Desembainha a tua espada e atravessa-me com ela, para que não venham estes incircundados e me tirem a vida, escarnecendo de mim. Mas o seu escudeiro não o quis fazer, porque se apoderou dele um excessivo terror. Por isso Saul tomou a espada, e deixou-se cair sobre ela. O escudeiro, vendo que Saul estava morto, lançou-se também ele mesmo sobre a sua espada e morreu com ele” (I Sam 31, 4-5). Que castigo mais terrível para um homem que havia sido escolhido por Deus para tão grande missão e que renegara a tudo por ódio à graça fraterna.

Ungido novamente como rei, Davi tem que conquistar seu trono


Davi é novamente ungido como rei (II Sam 2, 2, 4), mas ainda não consegue efetivamente reinar, pois um provecto general do exército constituiu um filho de Saul como rei, e houve luta entre os partidários de Davi e de Saul (II Sam 2, 2, 12-17), mas os de Davi vencem. E nada restou da estirpe de Saul que pudesse reclamar algum direito sobre o trono de Israel. Davi foi aclamado rei, tanto pelo povo como pelo próprio Deus.
Davi reina, finalmente, sobre todo Israel (II Sam 2 5, 1-5). Tinha 30 anos quando começou a reinar, e reinou durante 40 anos. Finalmente, havia se consolidado a Monarquia baseada em princípios divinos.

Juraci Josino Cavalcante - juracuca@hotmail.com