terça-feira, 9 de abril de 2013

O VERDADEIRO SENTIDO DE BONDADE



Talvez não se tenha certeza, a estas alturas da situação moral de nosso povo, se permanece ainda no coração do povo brasileiro aquela bondade tão famosa em tempos idos. Para uma análise, seria interessante ver qual o verdadeiro sentido de "bom coração" ou de bondade. Para tanto, expomos abaixo um artigo do Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre o tema:
 
 
“Uma deformação romântica da caridade: “o bom coração”.

 

Odiar é pecado? Sim, não? Por que? Se alguém se encarregasse de fazer entre os nossos católicos um inquérito a este respeito, recolheria respostas muito curiosas, revelando em geral uma pavorosa confusão de idéias, um ilogismo fundamental.

Para muita gente, ainda intoxicada por restos do romantismo herdado do século XIX, o ódio não é apenas um pecado, mas o pecado por excelência. A definição romântica do homem mau é o que tem ódio no coração. A contrário sensu, a virtude por excelência é a bondade, e por isto todos os pecados têm sua atenuante se cometidos por uma pessoa de "bom coração". É freqüente ouvirem-se frases como esta: "pobre X, teve a fraqueza de se ‘casar’ no Uruguai, mas no fundo é muito boa pessoa, tem ótimo coração". Ou então: "pobre Y, deixou roubar em sua repartição, mas foi por excesso de bondade: ele não sabe dizer não, a ninguém".

O que vem a ser "um bom coração"? Evidentemente, começa por não ser um coração propriamente dito, mas um estado de espírito. Tem "bom coração" quem experimenta em si, muito vivamente, o que sofrem os outros. E que, por isto mesmo, nunca faz sofrer a ninguém. É por "bom coração" que uma pessoa pode deixar sistematicamente impunes as más ações de seus filhos, permitir que a anarquia invada a aula em que leciona, ou os operários que dirige. Uma reprimenda faria sofrer, e a isto não se resolve o homem de "bom coração", que sofre ele mesmo demais, em fazer os outros sofrer. O "bom coração" sacrifica tudo a este objetivo essencial, de poupar sofrimento. Se vê alguém queixar-se do rigor do Decálogo, pensa imediatamente em reformas, abrandamentos, interpretações acomodatícias. Se vê alguém sofrer de inveja por não ser nobre, ou milionário, pensa logo em democratização. Juiz, sua "bondade" o levará a sofismar com a lei para deixar impunes certos crimes. Delegado, fechará os olhos a fatos que seu dever funcional lhe imporia que reprimisse. Diretor de prisão, quererá tratar o sentenciado como uma vítima inocente dos defeitos da época e do ambiente; e, em conseqüência, instaurará um regime penal que transformará a casa de correção em ponto de encontro de todos os vícios, em que a livre comunicação entre sentenciados exporá cada um ao contágio de todos os vírus que ainda não tem. Professor, aprovará sonolenta e bonacheironamente alunos que no máximo mereceriam 2 ou 3. Legislador, será sistematicamente propenso a todas as reduções de horas de trabalho, e a todos os aumentos de salário. Na política internacional, será a favor de todos os "Munique" de todas as capitulações imprevidentes, preguiçosas, imediatistas desde que sem dispêndio de energia salvem a paz por mais alguns dias.

Subjacente a todas estas atitudes, está a idéia de que no mundo só há um mal, que é a dor física ou moral: em conseqüência, bem é tudo quanto tende a evitar ou a suprimir sofrimento, e mal é o que tende produzi-lo ou agrava-lo. O "bom coração" tem uma forma especial de sensibilidade, pela qual se emociona à vista de qualquer sofrimento, e defende todo e qualquer indivíduo que sofre, como se ele fosse vítima de uma injusta agressão. Dentro desta concepção, "amar ao próximo" é não querer que ele sofra. Fazer sofrer o próximo é sempre e necessariamente ter-lhe ódio.

Daí advém para o homem de "bom coração" uma psicologia muito especial. Todos os que têm zelo pela ordem, pela hierarquia, pela integridade dos princípios, pela defesa dos bons contra as investidas do mal, são desalmados, pois "fazem sofrer" com sua energia os "pobres coitados" que "tiveram a fraqueza" de cair em algum deslize.

E se em relação a todos os pecadores da terra o homem de "bom coração" tem tolerância, é muito explicável que odeie o homem de "mau coração" que "faz sofrer os outros".

Estas são as linhas gerais em que se pode sintetizar um estado de espírito muito freqüente. Claro está que apontamos um caso em tese. Graças a Deus, só um número relativamente pequeno de pessoas é que em todos os campos chega a estes extremos. Mas é freqüente encontrar gente que em diversos pontos age inteiramente assim.

E constituem multidão aqueles em que se encontram pelo menos laivos deste estado de espírito.

Ainda aqui, alguns exemplos são esclarecedores. Para mostrar quanto este mal está entranhado no brasileiro, escolhamos esses exemplos em maneiras de falar e de sentir comuns entre católicos.

Para que se entenda bem o que há de errado nos exemplos que vamos dar, comecemos por lembrar rapidamente qual é neste assunto a autêntica doutrina católica.

Para a Igreja, o grande mal neste mundo não é o sofrimento, mas o pecado. E o grande bem não consiste em ter boa saúde, mesa farta, sono tranqüilo, em gozar honras, em trabalhar pouco, mas em fazer a vontade de Deus. O sofrimento é certamente um mal. Mas este mal pode em muitos casos transformar-se em bem, em meio de expiação, de formação, de progresso espiritual. A Igreja é Mãe, a mais terna, a mais solícita, a mais carinhosa das mães. Dela se pode dizer, como de Nossa Senhora, que é Mater Amabilis, Mater Admirabilis, Mater Misericordiae. Assim, ela procurou sempre, procura hoje, até o fim dos séculos procurará quanto possa afastar de seus filhos, e de todos os homens, qualquer dor inútil. Mas nunca deixará de lhes impor a dor, na medida em que a glória de Deus e a salvação das almas o peçam. Ela exigiu dos mártires de todos os séculos que aceitassem os tormentos mais atrozes, ela pediu aos cruzados que abandonassem o conforto do lar para arrostar mil fadigas, combates sem conta, a própria morte em terra estranha. E ainda em nossos dias ela pede aos missionários que se exponham a todos os riscos, a todas as fadigas, nos rincões mais inóspitos e longínquos. A todos os fiéis, pede ela uma luta incessante contra as paixões, um esforço interior contínuo para reprimir tudo quanto é mau. Ora, tudo isto supõe sofrimentos de tal monta, que a Igreja os considera insuportáveis para a fraqueza humana, a ponto de ensinar que, sem a graça de Deus, ninguém pode praticar na sua totalidade, e duravelmente, os Mandamentos.

Todos estes sofrimentos, a Igreja os impõe com prudência e bondade, é certo, mas sem vacilação, nem remorso, nem fraqueza. E isto, não apesar de ser boa mãe, mas precisamente porque o é. A mãe que sentisse remorso, vacilasse, fraquejasse ao obrigar seu filho a estudar, a se submeter a tratamentos médicos penosos mas necessários, a aceitar punições merecidas, não seria boa mãe.

 Este procedimento, a Igreja o espera também de seus filhos, não só em relação a si mesmos, mas ao próximo. É justo que nos dispensemos de dores inúteis e evitáveis. Devemos ter para com o próximo entranhas de misericórdia, condoendo-nos com seus padecimentos, e não poupando esforços para os aliviar. Entretanto, devemos amar a mortificação, devemos castigar corajosamente nosso corpo e, principalmente, combater com afinco, clarividência, meticulosidade os defeitos de nossa alma. E como o amor do próximo nos leva a desejar para ele o mesmo que para nós, não devemos hesitar em fazê-lo sofrer, desde que necessário para sua santificação.

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Ora, na aplicação destes princípios é fácil apontar muitos desvios ocasionados pela concepção romântica do "bom coração".

É "bom coração" ter certa condescendência para com formas veladas de divórcio, por pena dos cônjuges, ser pela abolição dos votos religiosos e do celibato sacerdotal, por pena das pessoas consagradas a Deus, considerar com laxismo os problemas ligados à limitação da prole por pena da mãe, etc. Em outros campos, o "bom coração" consiste em ser contra as polêmicas ainda que justas e temperantes, contra o Index, contra o Santo Ofício, contra a Inquisição ( ainda que sem os abusos a que deu ocasião em alguns lugares ), contra as Cruzadas, porque tudo isto faz sofrer. Em outros campos ainda, o "bom coração" consiste em não falar de demônio, nem de inferno ou de purgatório, em não avisar aos doentes que a morte está próxima, em não dizer aos pecadores a gravidade de seu estado moral, em não lhes falar de mortificação, nem de penitência, nem de emenda, porque também isto faz sofrer. Já vimos um educador católico se manifestar contra os prêmios escolares porque fazem sofrer os alunos vadios! Como já vimos também associações religiosas tolerando em seu grêmio elementos perigosos para os associados e desedificantes para o público, porque a expulsão desses elementos os faria sofrer. Falar contra as modas e danças imorais, preconizar uma censura cinematográfica sem laxismo tudo isto em última análise parece descaridoso, porque "faz sofrer". Soubemos a este respeito de alguém que desaconselhava uma campanha contra os jornais imorais porque isto "faz sofrer" os editores cujas almas cumpre salvar!

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Fizemos esta longa digressão para focalizar melhor o problema que de início formulávamos. Para o "bom coração", todo ódio é necessariamente um pecado. Dir-se-á o mesmo à luz da doutrina católica?

Pensando no perigoso furor da avalanche de "bons corações" de que o Brasil está cheio, quase não ousamos formular a pergunta. E certamente não responderemos por nós. Mas falaremos pela grande e autorizada voz de S. Tomás.

É o que faremos em próximo artigo”.

 

( “Catolicismo”, edição n.34, de outubro de 1953):

 

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