O Paraíso celeste

I - Textos doutrinários sobre o Paraíso Celeste


Segundo a Doutrina Católica, na outra vida vamos desfrutar dois tipos de céu ou paraíso. A chamada “visão beatífica” consistirá em ver Deus face a face e será o supra-sumo da beatitude, conforme foi dito a Abraão: “Eu sou a tua recompensa demadiasamente grande” (Gn 15, 1). Este seria o paraíso espiritual, destinado às nossas almas. No entanto, como o homem foi feito por Deus composto de corpo e alma, e seu corpo vai ressuscitar após o Juízo Final, Deus destinou também um paraíso material para os corpos humanos, que na teologia se chama “Céu Empíreo”. O termo vem do vocábulo grego “PYR”, que significa fogo, e a palavra empíreo significa esplendor provindo do fogo ou da luz.
Com fundamento nas Sagradas Escrituras os santos e alguns místicos fazem maravilhosas descrições do Céu Empíreo, oriundas estas de suas visões ou êxtases.
Santo Agostinho diz que no Céu Empíreo há uma primavera perpétua que faz ver rosas perpétuas, resplandecentes na brancura dos lírios e no vermelho do açafrão. Estudiosos da Escritura, chamados exegetas, deduziram que lá os santos bem-aventurados poderão se deleitar com riquezas e objetos belíssimos e preciosíssimos. Segundo eles, os olhos não se comprazem somente com a luz, mas com a variedade de cores, como o verde variado dos campos, das árvores, das flores, dos frutos, etc., assim como dos rios e fontes transparentes como cristal e, principalmente, como as pedras preciosas. Portanto, tudo isto será desfrutado no Céu Empíreo.
Vários santos apareceram a videntes vestidos com trajes resplandecentes e de ouro e com pedras preciosas. Um exemplo foi o sonho em que São Domingos Sávio apareceu a São João Bosco, onde há também uma profusão de jardins, de mansões fantásticas, de corpos resplandecentes, etc.
Santa Inês e outras virgens apareceram vestidas de roupas de ouro e cobertas de pedras preciosas, conforme diz Santo Agostinho.
Foi do Céu Empíreo que falou São Paulo ao dizer: “Nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do homem, o que Deus preparou para aqueles que o amam(1 Cor 2,9)”. Pois olhos, ouvidos e coração são órgãos e sentidos próprios do corpo humano e não do espírito.
Vejamos alguns textos que falam do Paraíso celeste, especialmente do Céu Empíreo.


A) A glória dos Bem-Aventurados
“De modo semelhante, a alma justa, que termina a vida em afeto de caridade e unida ao amor, tampouco pode crescer em virtude terminada sua vida. Pode, sem embargo, amar sempre com a mesma dileção com que caminha até mim, e será premiada em proporção a ela. Sempre me deseja e sempre me possui, pelo que seu desejo não é inútil, senão que, tendo fome, é saciada. Esta fartura lhe produz mais fome, e está longe do tédio que produz a saciedade, e também do sofrimento que causa a fome.
Gozam, em amor, eternamente na minha presença. Do bem que eu possuo lhes faço partícipes, a cada um segundo proporção; quer dizer, que com a medida do amor com que eles têm chegado a mim, com a mesma reparto eu. Por haver permanecido em minha caridade e na do próximo, unidos juntamente pela caridade geral e a particular, se gozam e alegram, participando um do outro pelo afeto da caridade, além da felicidade universal que todos desfrutam em comum. Gozam e se alegram com os anjos, entre os quais se encontram os santos, segundo as diversas e variadas virtudes que praticaram de modo especial no mundo. Estando unidos todos pelo laço da caridade, têm uma participação especial com aqueles que se amaram no mundo com singular amor, e por cujo amor cresciam em graça com aumento da virtude. Um era causa do outro, além de manifestar a glória e louvor de meu nome neles e no próximo. De modo que logo, na vida que sempre dura, não perdem o amor, senão que, pelo contrário, participam deles mais intimamente e com maior abundância uns de outros, acrescendo-lhe a isto o bem da felicidade geral.
Não quisera, sem embargo, que acreditasses que a felicidade particular que te tenho dito que possuem a têm unicamente por eles. Não é assim, senão que é participada por todos os bem-aventurados cidadãos do céu, por meus amados filhos e pelos anjos. Assim, quando a alma alcança a vida eterna, todos participam dela, e ela do bem dos demais. Não é que a capacidade receptiva dessa alma e das demais possa acrescentar nem que tenha precisão de encher-se, senão que se acha cheia, e por isso não pode aumentar. Goza de satisfação, júbilo e alegria, que reavivam ao saber eles que se têm encontrado com aquela alma. Vêm que por minha misericórdia têm sido elevadas à plenitude da graça, e se alegram comigo pelo bem que têm recebido de minha bondade.
Essa alma goza de mim, nas almas e nos espíritos bem-aventurados ao ver e experimentar neles a doçura de minha caridade, e seus desejos clamam a mim pela salvação do mundo inteiro. Sua vida que terminou na caridade com o próximo, não a tem perdido, senão que com a caridade passou pela porta de meu Filho unigênito, como depois te direi. Vês, portanto,que por toda a eternidade permanecem com o mesmo laço de amor com que terminou sua existência na terra.
Se acham tão identificadas com minha vontade, que não podem querer senão o que eu quero, porque sua liberdade está tão atada pelo laço da caridade que, chegando-lhe o fim, se morre em estado de graça, não pode pecar mais. Tão unidas estão sua vontade e a minha, que, se vê ao pai, à mãe ou a seu filho no inferno, ou seu filho à mãe, não lhes dá cuidado, e até estão contentes de vê-los castigados por serem inimigos meus. Sem discordar de mim, seus desejos se acham cumpridos.
Os desejos dos bem-aventurados é ver minha honra em vós, caminhantes, peregrinos, que sem cessar os aproximais da morte. Ao desejar a honra, desejam vossa salvação , e por isso rogam por vós. Por minha parte, este desejo se acha cumprido se vós não resistis, como ignorantes, a minha misericórdia.
As almas tendem a voltar a possuir seu corpo, porém não sofrem ao não tê-lo naquele momento. Gozam saboreando a certeza de que seu desejo lhes será planamente satisfeito. Não sofrem, porque o não tê-lo não lhes priva a felicidade, e por isso não sofrem pena.
Não pense que a bem-aventurança do corpo, depois da ressurreição, há de proporcionar maior felicidade à alma. Se assim fosse, se seguiria que a bem-aventurança seria imperfeita até que a alma se achasse unida a ele. Isto não pode dar-se, pois aos bem-aventurados não lhes falta perfeição alguma. Não é o corpo que dá a felicidade à alma, senão esta a dará ao corpo. Ela lhe dará de sua abundância quando no último dia do juízo volte a vestir a vestimenta da mesma carne que abandonou.
Como a alma foi criada imortal, firme e assentada em mim, assim o corpo, pela nova união, se fará imortal e, perdida a gravidade, se fará sutil e ligeiro.
Tem em conta que o corpo glorificado pode atravessar uma parede e que nem o fogo e nem a água lhe podem molestar, não por si mesmo, senão por sua união com a alma. Esta faculdade provém de mim, dada gratuitamente pelo inenarrável amor com que tenho criado à imagem e semelhança minhas.
Nem teu entendimento pode compreender, nem teu ouvido ouvir, nem tua língua narrar, nem teu coração pensar essa felicidade.
Quando gozo experimentam vendo-me a mim, que sou a felicidade completa! Que dita sentirão quando tiverem o corpo glorificado! Não sofrem porque não podem possuir este bem até o juízo universal, pois não lhes falta a bem-aventurança, já que a alma se acha plena em si mesma. Desta plenitude como te tenho dito, participará o corpo.
Tenho te falado do bem que terá o corpo glorificado na humanidade glorificada de meu Filho unigênito. Ele os dá a segurança de vossa ressurreição. Nela transbordam de alegria suas chagas frescas, conservadas ainda as cicatrizes em seu corpo, que por vós imploram sem cessar misericórdia a mim, supremo e eterno Pai. Tudo se achará de acordo com Ele em gozo e alegria: o olho com o olho, a mão com a mão; todos os assemelháveis em tudo ao corpo do doce Verbo, meu Filho. Permanecendo em mim, permaneceis nEle, porque é um comigo. Os olhos de vosso corpo, como te tenho dito, se alegrarão na humanidade glorificada do Verbo, meu Filho unigênito.
Por que isto? Porque sua vida termina em honra de minha caridade; por isso dura eternamente. Não é que possam realizar boas obras, porém se gozam no que têm sofrido; quer dizer, não podem realizar um ato meritório, já que nesta vida se merece e se peca, segundo apraz à própria vontade pelo livre arbítrio.
Estes não esperam o juízo divino com temor, senão com alegria; a face de Deus não lhes parecerá cheia de ira, porque estão mortos em minha caridade e dileção e com benevolência para com o próximo.
Vês, portanto, que a mutação do semblante não se efetuará nEle quanto venha a julgar com minha Majestade, senão nos que hão de ser julgados. Aos condenados lhes aparecerá com ódio e justiça; aos salvados, com amor e misericórdia”


(Obras de Santa Catarina de Siena – BAC – “El Diálogo”, págs. 122/124)


B) A felicidade na glória eterna
“Procuremos sofrer com paciência as aflições da vida presente, oferecendo-as a Deus, em união com as dores que Jesus Cristo sofreu por nosso amor e alentando-nos com a esperança da glória. Esses trabalhos, penas, angústias, perseguições e temores hão de acabar um dia e, se nos salvarmos, serão para nós motivos de gozo e alegria inefável no reino dos bem-aventurados. É o próprio Senhor que nos anima e consola. “Vossa tristeza há de converter-se em alegria” (Jo 16, 20). Meditemos, portanto, sobre a felicidade da glória... Mas que diremos desta felicidade, quando nem os Santos mais inspirados souberam dar uma idéia acertada das delícias que Deus reserva aos que o amam?... David apenas soube dizer que a glória é o bem infinitamente desejável... (Sl 83, 2). E tu, insigne São Paulo, que tiveste a dita de ser arrebatado ao céu, dize-nos alguma coisa ao menos do que viste ali!... Não, - respondeu o grande Apóstolo – o que vi não é possível exprimir. Tão sublime são as delícias da glória, que não pode compreendê-las quem não as desfruta (2 Cor 12, 9). Tudo o que posso dizer é que ninguém nesta terra viu, nem ouviu, nem compreendeu as belezas, as harmonias e os prazeres que Deus preparou para aqueles que o amam (1 Cor 2, 9).
Neste mundo, não somos capazes de imaginar os bens do céu, porque só formamos idéia do que o mundo nos apresenta... Se, por maravilha excepcional, um ser irracional fosse dotado de razão e soubesse que um rico senhor ia celebrar esplêndido banquete, imaginaria que o repasto haveria de ser o melhor e o mais seleto, mas semelhante ao que ele usa, porque não poderia conceber nada melhor como alimento. Assim acontece conosco relativamente aos bens da glória... Quanto é belo contemplar, em serena noite de verão, a mgnificência do firmamento recamado de estrelas! Quão admirável é admirar as águas tranqüilas de um lago transparente, em cujo fundo se descobrem peixes a nadar e pedras cobertas de musgo! Quanta formosura num jardim cheio de flores e de frutos, circundado de fontes e riachos, matizado por lindos passarinhos, que cruzam o ar e o alegram com seu canto mavioso!... Dir-se-ia que tantas belezas são o paraíso... Mas não! Muito diferentes são os gozos e as formosuras do paraíso. Para deles fazermos uma vaga idéia, consideremos que ali está Deus onipotente, enchendo de delícias inenarráveis as almas que ele ama... Quereis saber o que é o céu? – dizia São Bernardo, - pois sabei que ali não há nada que desagrade, e existe todo bem que deleite.
Que dirá a alma quando entrar naquela mansão felicíssima?... Imaginemos um jovem ou uma virgem que, tendo consagrado toda a sua vida ao amor e ao serviço de Cristo, acaba de morrer e deixa este vale de lágrimas. Sua alma apresenta-se ao juízo; o juiz a acolhe com bondade e lhe declara que está salta. O anjo da guarda a acompanha e felicita, e ela lhe mostra sua gratidão pela assistência que recebeu dele. “Vem, pois, alma querida, diz-lhe o anjo: regozija-te porque estás salva. Vem contemplar a face co Senhor!” E a alma se eleva, transpõe as nuvens, passa além das estrelas, e entra no céu... Meu Deus!... Que sentirá a alma ao penetrar, pela primeira vez, naquele reino de venturas e ver aquela cidade de Deus, insuperável em formosura?... Os anjos e os santos a recebem alegres e lhe dão amorosas boas-vindas... Ali encontrará, sob indizível júbilo, os seus santos padroeiros e os parentes e amigos que a precederam na vida eterna. A alma quererá prostrar-se diante deles, mas estes a impedirão, recordando-lhe que são também servos do Senhor (Apoc 22, 91). Levá-la-ão depois a beijar os pés da Santíssima Virgem, Rainha dos Céus. A alma sentirá imenso delíquio de amor e de ternura vendo, pela primeira vez, sua excelsa e divina Mãe que tanto lhe ajudou a salvar-se e que agora lhe estende amorosamente os braços, fazendo-lhe reconhecer todas as graças que alcançou por sua intercessão perante nosso Rei Jesus Cristo, que a receberá como esposa amantíssima, e lhe dirá: “Vem do Líbano, minha esposa; vem e serás coroada (Cant 4,8); alegra-te e consola-te, que passaram já as lágrimas, as penas e os temores; recebe a coroa imarcescível que te alcancei a preço de meu sangue...” Jesus a apresentará ao Pai Eterno que lhe lançará a sua bênção, dizendo: “Entra na alegria do teu Senhor” (Mt 25, 21) e lhe comunicará uma Bem-aventurança sem fim, com felicidade semelhante a que ele goza”.


Deus enxugará todas as lágrimas
“Depois que a alma entra a gozar a divina beatitude, não terá mais nada a sofrer. “Deus enxugará todas as lágrimas de seus olhos, e já não haverá morte, nem pranto, nem gemido, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E o que estava sentado no trono disse: Eis que eu renovo todas as coisas” (Apoc 21, 4-5). Não existe ali a sucessão de dias e noites, de calor e frio, mas um dia perpétuo sempre sereno, contínua primavera deliciosa e perene. Não há perseguições nem ciúmes, porque nesse reino de amor todos se amam com ternura, e cada um goza da felicidade dos demais como se fosse sua própria.
Desconhecem-se ali angústias e temores, porque a alma confirmada na graça já não pode pecar nem perder a Deus. Todas as coisas ostentam renovada e completa formosura (Apoc 21, 5), e todas satisfazem e consolam. Os olhos deslumbrar-se-ão na admiração daquela cidade de perfeita beleza. Que deliciosa espetáculo seria vermos uma cidade cujas ruas fossem calçadas de terso e límpido cristal e cujas vivendas, de prata brunida, fossem cobertas de ouro puríssimo e ornadas de grinaldas de flores... Quanto mais bela ainda é a cidade da glória! Como será agradável ver os felizes moradores vestidos com pompa real, porque, segundo diz Santo Agostinho, todos são reis! Que prazer será contemplar a Virgem Santíssima, mais bela que o próprio céu, e o Cordeiro imaculado, Nosso Senhor Jesus Cristo, divino esposo das almas! Santa Teresa conseguiu ver, certo dia, apenas uma das mãos do Redentor e ficou maravilhada à vista de tanta beleza... Nas moradas celestes recenderão suavíssimos perfumes, aromas de glória, e se ouvirão músicas e cânticos de sublime harmonia... São Francisco ouviu, certa vez, por breves instantes, a execução dessa harmonia angélica e julgou morrer de dulcíssimo prazer... Que será, pois, a audição dos coros de anjos e santos, que, conjuntamente, cantam as glórias divinas (Sl 83, 5), e a voz puríssima da Virgem Imaculada que louva o seu Deus!... Como o canto do rouxinol num bosque excede e supera ao das demais aves, assim é a voz de Maria no céu... Numa palavra: haverá na glória todas as delícias que se podem desejar.
Mas esses prazeres até aqui considerados são apenas os menores bens do céu. O bem essencial da glória é o bem supremo: Deus. A recompensa que o Senhor nos promete não consiste unicamente na beleza, na harmonia e nos encantos daquela cidade bem-aventurada; a recompensa principal é Deus, mesmo, amá-lo e contemplá-lo face a face (Gn 15, 1). Assegura Santo Agostinho que, se Deus mostrasse seu rosto aos condenados, “o inferno se transformaria de súbito em delicioso paraíso”. E acrescenta que, se fosse dado a uma alma, ao sair deste mundo, a escolha de ver a Deus, ficando no inferno, ou de não vê-lo e livrar-se das penas infernais, “preferiria, sem dúvida, a visão de Deus ainda que com os tormentos eternos”.
A felicidade de amar a Deus e vê-lo face a face não podemos compreender cabalmente neste mundo. Procuremos, porém, avaliá-la de alguma maneira, considerando que os atrativos do divino amor, mesmo na vida mortal, chegam a arrebatar não somente a alma, mas até o corpo dos santos. São Felipe Neri foi uma vez arrebatado ao ar juntamente com o banco em que estava sentado. São Pedro de Alcântara elevou-se também sobre a terra abraçado a uma árvore, cujo trono se separou da raiz. Sabemos, além disso, que os santos mártires, graças à suavidade e doçura do amor divino, se regozijavam no meio dos seus atrozes padecimentos. São Vicente, durante o seu martírio, falava de tal modo – diz Santo Agostinho – “que não parecia ser o mesmo que estava falando e o que estava sofrendo”. São Lourenço, estendido sobre as grelhas em fogo, dizia ao tirano com assombrosa serenidade: “Vira-me e devora-me”, porque, como observa Santo Agostinho, Lourenço, “incendiado do amor divino, não sentia o fogo material que o devorava”. Além disso, quão suave doçura encontra o pecador ao chorar as suas culpas! “Se tão doce é chorar por ti – exclama São Bernardo – o que não será gozar por ti?” Que inefável consolação não sente a alma, quando um raio de luz celeste descobre, durante a oração, algo da bondade e da misericórdia divina, do amor que lhe teve e ainda tem Nosso Senhor Jesus Cristo! Parece-lhe que a alma se consome e desfalece de amor. E, no entanto, neste mundo não vemos a Deus tal qual é, divisamo-lo entre sombras. Presentemente, temos uma venda ante os olhos e Deus se nos oculta sob o véu. Que sucederá, porém, quando desaparecer essa venda e se rasgar aquele véu, e nossos olhos virem quanto Deus é belo, quanto é grande e justo, perfeito, amável e amoroso?” (1 Cor 13, 12).

C) Os dons do corpo glorioso
“Considerai os quatro dotes da glória do corpo e o modo com que nesta vida posso participá-los espiritualmente...


A impassibilidade
1.O primeiro dote é o da Impassibilidade, pelo qual fica o corpo isento de toda a corrupção e penalidade. Deste participam aqui os resignados e sofridos; porque, como não pretendem se faça a sua vontade, senão a de Deus, nada lhes dá pena.
2. E não só carece o corpo de toda a penalidade, senão que em todos seus sentidos gozará de recreação honesta e suavíssima. Os olhos vendo a Cristo Senhor Nosso e a sua Mãe Santíssima, e a todos os mais Santos, e a fábrica dos Céus e Terra. Os ouvidos percebendo a música dos louvores Divinos e a conversação dos Cortesãos do Céu. O olfato sentindo a fragrância que seus corpos respiram. O gosto estando banhado numa doçura que excede a todas as da Terra. Estes prêmios alcança quem se mortifica. Vejam quanto perdem os que dão liberdade a seu sentidos.


A claridade
“1. O segundo dote é o da Claridade, pela qual fica o corpo mais formoso e resplandecente que o Sol; e sendo tantos estes Sóis, que alegre vista formarão? Louvemos a Deus, fonte de toda a luz e formosura; e reparemos que a disposição para merecer este dote é fugir dos luzimentos mundanos e alumiar os próximos com a doutrina e bom exemplo.
2, Não só fica o corpo luzido, senão também transparente, de sorte que se podem ver todos seus interiores. Então admiraremos a ciência com que Deus o fabricou e o poder com que o trocou, de tão vil, em tão nobre. Razão é que não usemos de nossos membros para coisa indigna de seu Autor e da glória que lhes reserva.
3. Esta claridade será maior, conforme foram maiores os merecimentos. Quanta será logo a de Cristo Senhor Nosso e de Maria Santíssima? Suspira por chegar a vê-la, e para isto te aproveita dos merecimentos do Filho e da intercessão da Mãe”.


A agilidade
“1. O terceiro dote é o da Agilidade. Em virtude sua exercitação os bem-aventurados três gêneros de movimento. Primeiro, que chamam orgânico, movendo-se para seu uso conveniente; segundo, progressivo, andando todo o corpo para onde quiserem, ainda que seja pelo ar ou sobre as ondas; terceiro, simples, voando o corpo pelo ímpeto do espírito como uma seta; e tudo sem trabalho ou repugnância. Bem pelo contrário experimentamos agora, pois não somos senhores, senão escravos do nosso corpo. Consolemo-nos com aquela esperança, e exercitemos no caminho das virtudes três semelhantes movimentos: o orgânico, procedendo com boa ordem e por devidos meios, o progressivo, adiantando-se sempre no serviço de Deus, o simples, buscando só a glória de Deus.
2. Esta qualidade dos corpos gloriosos excede a qualquer outra natural, ainda a do primeiro móvel; e porventura que por ela pode um corpo deslocar-se de um extremo a outro, sem passar pelo meio. Pondera aqui duas coisas: Primeira, a grandeza e poder de Deus, que tantos servos tem, para executarem sua santíssima vontade em um movimento e em toda a parte; e por isso merece que O adoremos e sirvamos. Segunda, como esta agilidade corresponde à obediência pronta que o servos de Deus tiveram, e nisto nos provocam a sua imitação”.


A sutileza
“1.O quarto dote é o da Sutileza, e faz com que um corpo glorioso possa penetrar-se com outro não glorioso, ficando ambos no mesmo lugar sem resistência alguma. Deste dote parece participam os exercitados em oração e mortificação, porque de tal modo desfazem em si, que todos parecem espírito e com todos cabem.
2. Ponderados estes quatro dotes da glória do corpo, por eles subirei a contemplar quantos serão os da alma, do que os do corpo não é mais que uns sobejos, e quão formosa será a medida, pois é tanto que o transborda; e assim farei novas determinações de procurar com toda a diligência merecer tão feliz estado, pedindo para isso os socorros da graça do Senhor”


(“Obras do Padre Manuel Bernardo”, vol. I, Exercícios Espirituais, págs. 523/525).


II – Visões e revelações sobre o Paraíso Celeste


A) São João Bosco, sua vida e seus sonhos


Giovanni Bosco, como era chamado em italiano São João Bosco, nasceu de humilde família, a 16 de agosto de 1815 em Becchi, vilarejo de Murialdo, aldeia pertencente a Castelnuovo de Asti, na Itália. Devido à fama de seu filho, a cidade passou futuramente a chamar-se Castelnuovo don Bosco.
Ainda não completava seus dois anos de idade quando veio a falecer seu pai, Francisco Bosco, deixando a viúva, D. Margarita Occhiena, com seus dois filhos, João e José Bosco, e um filho de Francisco, mais velho de todos, com 9 anos, chamado de Antonio.
Desde cedo, João Bosco revelou-se um menino prodígio, manifestando possuir várias habilidades pessoais e memória espantosa. Aos dez anos, reunia seus companheiros para ministrar-lhes aulas de catecismo. Algum tempo depois usou de um estratagema: aprendeu a fazer malabarismos circenses , com o que atraía grande quantidade de meninos, e, tendo-os reunido, passava a lhes ensinar o catecismo. A estas alturas já tinha aprendido a ler e escrever corretamente, coisa difícil no lugarejo onde morava.
A fim de freqüentar as aulas, João Bosco tinha que viajar diariamente vários quilômetros a pé. Como seu irmão mais velho era contrário a que estudasse e viesse alegando as dificuldades financeiras que passavam, nosso santo resolveu que deveria viajar descalço a fim de não estragar seus sapatos. Quando chegava perto da escola, lavava os pés e os calçava. Quando retornava para casa, tirava os sapatos novamente.
Sua prodigiosa memória um dia foi constatada no recinto da escola. Seu professor pede que ele leia a lição da aula que estava dando naquele momento. João Bosco põe-se de pé, de costas para seus colegas, e começa a leitura. De repente, os alunos começam a rir. É que o livro encontrava-se de cabeça para baixo, embora ele falasse como se estivesse lendo-o. Indagado sobre o fato, João Bosco afirmou que já havia lido todo aquele livro e o decorado completamente, e quando o professor pediu que lesse aquela lição, prontamente ele passou a falar como se estivesse lendo-a, embora o livro estivesse em sua mão da forma como o apanhou na carteira, isto é, de cabeça para baixo e noutra página diferente. Não contente com suas explicações, o mestre tomou-lhe o livro e solicitou que repetisse ali mesmo todas as lições que ele fosse perguntando. Uma a uma, João Bosco descreveu todas as lições que o professor pedia... sem cometer nenhum erro.
São João Bosco contava vinte anos de idade quando entrou no seminário de Chieri. Foi ordenado cinco anos depois, obtendo nos exames a nota chamada “plus quam optime”, isto é, mais do que ótimo. Dois anos depois, vai visitar o padre José de Cottolengo, que também foi canonizado por suas altas virtudes e santidade. São José de Cottolengo profetiza sobre o futuro de Dom Bosco e sua obra. A partir deste momento, Dom Bosco passa a executar seu grande projeto de trabalhar em prol da juventude desamparada.
Tendo sido designado para exercer seu ministério sacerdotal em Turim, lá teve o nosso santo oportunidade de ver uma grande leva de jovens desgraçados e perdidos, a maioria formada por órfãos fugidos das guerras e vivendo na maior miséria. Assim, resolveu abrigá-los e dar-lhes orientação religiosa, criando o que ele denominou de Oratório. Desta espécie de albergue de jovens foi que surgiu a semente da Congregação, a ordem religiosa que passou a se chamar de Salesianos em homenagem a São Francisco de Sales.
Uma das características de São João Bosco foi seus famosos sonhos, a maioria de caráter proféticos. Quando se reunia com seus jovens no Oratório, o santo padre contava-lhes seus sonhos e os instruía sobre o significado dos mesmos. Alguns lhe revelavam segredos sobre o futuro da Igreja e a vida de pessoas conhecidas. Um dos fatos mais impressionantes sobre tais sonhos foi quando previu a morte de um filho do rei da Itália, caso o mesmo aprovasse uma lei anticristã que estava à sua mesa. Advertido, mesmo assim o rei aprovou a lei, vindo seu filho a falecer logo em seguida.
Por volta de 1870, Dom Bosco dá a público alguns sonhos nos quais estava profetizado o futuro de Paris, de Roma e da Igreja. Recebido em audiência pelo Papa Pio IX, Dom Bosco lhe narra seus sonhos proféticos. Também sonhou sobre os Novíssimos do homem (1), com impressionantes relatos sobre o inferno, o purgatório e o céu.
Um de seus discípulos mais fiéis foi um garoto chamado Domingos Sávio, falecido aos 14 anos de idade em alto grau de santidade. Tão santo que dizia que o único rosto feminino que desejava mirar era unicamente o da Santíssima Virgem quando chegasse no Céu. Foi exatamente este que lhe apareceu em sonhos para falar sobre o céu, cujo relato fazemos abaixo.


Vestíbulo do Céu - Aparição de São Domingos Sávio a São João Bosco (1876)


Sonhei. Talvez as coisas que sonhei vos pareçam muito estranhas. Mas vós sabeis que para meus filhos não tenho segredos; abro-lhes todo o meu coração. Pensai dele o que quiserdes. Mas, como diz São Paulo, quod bonum esse tenete (2) , se algo encontrardes nisto que seja de proveito para vossa alma, sabei aproveitar. Aquele que não quiser crer, não creia; mas ninguém jamais ridicularize as coisas que vou dizer. Além disso, desejaria que não contásseis nem comunicásseis por escrito àqueles que não sejam da casa. Aos sonhos se pode dar a importância que, enquanto sonhos, merecem; e aqueles que não conhecem nossa intimidade poderiam formar juízos errôneos, dando às coisas um nome diferente daquele que elas na realidade têm. Eles não sabem que vós sois meus filhos, e que sempre vos digo tudo que sei, e algumas vezes até aquilo que não sei. Mas aquilo que um pai manifesta a seus filhos para seu bem, deve ficar entre o pai e os filhos e não sair daí. E ainda por outra razão. Em geral, ao contar essas coisas fora, ou se desfiguram os fatos, ou somente se contam uma parte, e essa mal contada; de onde resultam prejuízos, pois o mundo desprezaria aquilo que não deve ser desprezado.
Convém que saibais que ordinariamente os sonhos a gente os tem enquanto dorme. Ora, na noite de 6 de dezembro, enquanto eu estava no quarto, não lembro bem se lendo ou passeando pelo aposento, ou se já me havia deitado, comecei a sonhar.


Começa o sonho – beleza extasiante aos olhos mortais
De início tive a impressão de estar sobre uma elevação ou colina, à beira de uma imensa planície, cujos confins se perdiam de vista na imensidade; era cerúlea como o mar calmo, se bem que aquilo que eu via não era água; parecia um puro cristal luzidio. Sob meus pés, atrás de mim e aos lados, eu via uma região à maneira de um litoral junto do oceano.
Largos e gigantescos caminhos dividiam a planície em vastíssimos jardins de beleza inenarrável, estando todos como que divididos em pequenos bosques, prados e canteiros de flores de diversas formas e cores. Nenhuma de nossas plantas pode nos dar uma idéia daquelas, se bem que alguma semelhança tenham. As ervas, as flores, as árvores, as frutas, eram vistosíssimas e de belíssimo aspecto. As folhas eram de ouro; os troncos e ramos de diamante, e o resto correspondia a essa riqueza. Era impossível contar as diferentes espécies. E cada espécie e cada flor resplandecia com luz especial. Em meio àqueles jardins e em toda a extensão da planície eu contemplava inumeráveis edifícios com uma ordem, beleza, harmonia, magnificência e proporções tão extraordinárias, que, para construção de um só deles, parece que não bastariam todos os tesouros da terra. Eu dizia para mim mesmo: “Se meus jovens tivessem uma única destas casas, como se alegrariam, que felizes seriam e com quanto prazer viveriam nela”. E isto, pensava eu, sendo que somente podia ver esses palácios por fora. Qual não deveria ser sua magnificência interior!


Extasiante também aos ouvidos
Enquanto contemplava extasiado tão estupendas maravilhas como as que adornavam aqueles jardins, chegou aos meus ouvidos uma música dulcíssima e de tão grata harmonia, que não posso dar-vos dela uma idéia adequada. Em comparação com ela nada são as de D. Cagliero e de D. Dogliani. Eram cem mil instrumentos que produziam cada um som diverso do outro, enquanto todos os sons possíveis difundiam pelo ar suas ondas sonoras. A estas uniu-se os coros dos cantores.
Vi então uma multidão de gente que naquele jardim se encontrava e se regozijava alegre e contente. Uns tocavam, outros cantavam. Cada voz, cada nota, tinha o efeito de mil instrumentos reunidos, todos diferentes uns dos outros. Ouviam-se simultaneamente os diversos graus da escala harmônica, desde os mais baixos até os mais altos que se possa imaginar, mas tudo em perfeita consonância. Ah! para descrever essa harmonia não bastam comparações humanas.
Via-se pelos rostos daquelas felizes habitantes do jardim, que os cantores não só experimentavam extraordinário prazer em cantar mas ao mesmo tempo sentiam imenso gozo ao ouvir os demais cantarem. E quanto mais alguém cantava mais se lhe acendia o desejo de cantar, e quanto mais ouvia mais desejava ouvir.
Era este o seu canto: Salus, honor, gloria Deo Patri Omnipotenti. Auctor, saeculi, qui erat, qui est, qui venturas est judicari vivos et mortuos in saecula saeculorum (3).


A multidão dos eleitos
Enquanto ouvia atônito estas celestes harmonias, vi aparecer uma multidão de jovens, muitos dos quais tinham estado no Oratório e nos outros colégios; conhecia a muitos, portanto; sendo-me, não obstante, desconhecida a maior parte. Aquela multidão interminável se dirigia a mim. À sua frente ia Domingos Sávio e atrás dele D. Alazonatti, D. Chiala, D. Giulitto e muitos outros sacerdotes e clérigos, cada um dirigindo uma seção de meninos.
Perguntei-me a mim mesmo: “Durmo ou estou acordado?” e batia palmas e batia no peito para assegurar-me de que era realidade o que via.
Chegada toda aquela multidão diante de mim, parou à distância de oito a dez passos. Então brilhou um relâmpago de luz mais viva; cessou a música e seguiu-se profundo silêncio. Aqueles jovens estavam possuídos de enorme alegria, que se refletia em seus olhos, e em seus rostos se via a paz de uma felicidade perfeita. Olhavam-me com um doce sorriso nos lábios e davam a impressão de que queriam falar; mas não falavam.


Glória e esplendor de São Domingos Sávio
Adiantou-se Domingos Sávio, sozinho, e manteve-se perto de mim. Em silêncio, olhava-me sorrindo. Como estava belo. Sua indumentária era realmente singular. Caía-lhe até os pés uma túnica alvíssima coalhada de diamantes e toda tecida de ouro. Cingia sua cintura uma ampla faixa vermelha recamada com tantas pedras preciosas que umas tocavam nas outras; e se entrelaçavam num desenho tão maravilhoso, oferecendo tanta beleza e colorido que eu, ao vê-lo, sentia-me fora de mim de admiração. Pendia-lhe do pescoço um colar de flores primorosas; as folhas assemelhavam-se a diamantes unidos entre si sobre ramos de ouro; e assim tudo o mais. Estas flores refulgiam com luz sobre-humana mais viva que a do sol, que naquele instante brilhava com todo o esplendor de uma manhã de primavera, refletindo seus raios sobre aquele rosto cândido e corado de maneira indescritível, iluminando-o de tal forma que não se podia sequer distinguir seus diversos traços. Levava sobre a cabeça uma coroa de rosas; caía-lhe sobre os ombros em ondulantes cachos a formosa cabeleira, dando-lhe um ar tão belo, tão afetuoso, tão encantador, que parecia... que parecia um Serafim!
Não menos resplandecente de luz estavam aqueles que o acompanhavam. Todos se vestiam de maneira diferente, mas sempre belíssima; uns mais, outros menos; uns de uma forma, outros de outra; num dominava uma cor, noutro, outra; e cada uma daquelas indumentárias tinha um significado que ninguém saberia compreender. Mas todos tinham a cintura cingida por uma faixa vermelha igual, recamada de pedrarias.


Finalmente, São Domingos Sávio fala a São João Bosco
Eu continuava contemplando absorto e pensava: “O que significa isto? Como vim parar neste lugar?” E não sabia onde me encontrava. Fora de mim, trêmulo pela reverência que aquilo me inspirava, não me atrevia a dizer palavra. Também os demais continuavam silenciosos. Finalmente, Domingos Sávio abriu os lábios.
- Por que estás aí mudo e como que aniquilado? Não és o homem que em outros tempos não temia nada, que arrostava com intrepidez as calúnias, as perseguições, os inimigos e as angústias e perigos de toda sorte? Onde está a tua coragem? Por que não fala?
Respondi eu com dificuldade, balbuciando:
- Eu não sei o que dizer... Mas não és tu Domingos Sávio?
- Sim, sou; já não me reconheces?
- E como te encontras aqui? – acrescentei confuso.
Domingos então afetuosamente disse:
- Vim para falar-te. Quantas vezes nos falamos na terra! Não recordas quanto me amavas, quantas provas de estima e quantas demonstrações de amor me deste? E eu por acaso não correspondi a teus desejos? Era tão grande a minha confiança em ti! Por que, pois, temes? Vamos! pergunte-me alguma coisa.


O esplendor do Paraíso comparado com o do mundo material aumentado por Deus
- É que não sei onde me encontro; por isso tremo.
- Estás no lugar de felicidade – respondeu Sávio – onde se gozam todas as alegrias, todas as delícias.
- É este pois o prêmio dos justos?
- Não, por certo. Aqui não se gozam os bens eternos, apenas, ainda que em larga medida, os temporais...
- Então, todas estas coisas são materiais?
- Sim, se bem que embelezadas pelo poder de Deus.
- E a mim me parecia que isto era o Paraíso! – exclamei.
- Não, não, não! – respondeu Sávio. – Não há olho humano mortal que possa ver as belezas eternas.
- E estas músicas – continuei perguntando – são as harmonias de que gozais no Paraíso?
- Não, não, já te disse que não!
- São sons naturais?
- Sim, são sons naturais, aperfeiçoados pela onipotência de Deus.
- E esta luz que sobrepuja a luz do sol, é luz sobrenatural?
- É luz natural, se bem que reavivada e aperfeiçoada pela onipotência de Deus.
- E não se poderia ver um pouco da luz sobrenatural?
- Ninguém pode vê-la enquanto não chegar a ver Deus sicut est. O menor raio desta luz tiraria no mesmo instante a vida de um homem, porque não há forças humanas que o possam sustentar.
- E pode haver uma luz natural mais bela do que esta?
- Se soubésseis! Se tu vísseis somente um raio de luz natural levada a um grau superior a este, ficareis fora de si... Vais vê-lo... Fixe os olhos! olha ali no fundo desse mar de cristal.
Levantei a vista, e ao mesmo tempo apareceu de improviso no céu, a uma distância imensa, uma centelha instantânea de luz, subtilíssima como um fio, mas tão brilhante, tão penetrante, que lancei um grito, o qual despertou D. Lemoye (aqui presente) que dormia num quarto próximo. Aquele fio de luz era cem milhões de vezes mais claro que o sol e seu fulgor bastaria para iluminar o universo inteiro.
- E isto, é um raio divino? – perguntei, apenas recuperado.
Sávio respondeu:
- Não é luz sobrenatural, se bem que, comparada com a terrestre, a supera em fulgor. Não é senão luz natural feita desta maneira mais viva pelo poder de Deus. E ainda que imaginasses uma imensa zona de luz semelhante à pequena centelha que acaba de ver ao longe rodeando todo o mundo, nem dessa forma terias idéia dos esplendores do Paraíso.
- E vós, o que gozais no Paraíso?
- Oh! Dizê-lo a ti é impossível; o que se goza no Paraíso não há nenhum mortal que possa sabê-lo enquanto não deixe esta vida e se reuna a seu Criador. Fica tudo dito ao dizer que se goza a Deus.
Nesse meio tempo, já plenamente recuperado de meu primeiro aturdimento, contemplava absorto a extraordinária formosura de Domingos Sávio, e com franqueza lhe perguntei:
- E esta tua roupa, tão branca e pomposa?
Domingos calou-se. O coro continuou suas harmonias e cantou acompanhado de todos os instrumentos: Ipsi abuerunt lumbos praecintos et dealbaverunt stolas suas ins sanguine agni (4).
Quando cessou o canto, voltei a perguntar:
- E essa faixa com que te cinges?
Também desta vez Sávio não quis responder.
E então, D. Alazonatti cantou sozinho:
Virgines enim sunt, et sequuntur adnum quocunque ierit.(5)
Compreendi então que a faixa encarnada, cor de sangue, era símbolo dos grandes sacrifícios feitos, dos violentos esforços e do quase martírio sofrido para conservar a virtude da pureza; e que, para manter-se casto na presença do Senhor, estivera pronto a dar a vida, se as circunstâncias assim o houvessem requerido; e também que era símbolo das penitências, que limpam a alma da culpa. A brancura e o esplendor da túnica significavam a inocência batismal conservada.
Eu, entretanto, atraído por aqueles cantos e contemplando todos aquelas falanges de jovens celestiais formados atrás de Domingos Sávio, perguntei-lhes:
- E quem são estes que te rodeiam?
E, dirigindo-se aos demais, disse-lhes:
- E como é que todos vós estais tão exultantes?
Sávio continuou em silêncio, e todos aqueles jovens puseram-se a cantar:
Hi sunt sicut angeli Dei in caelo. (6)
Entretanto, percebia que Domingos parecia ter preeminência sobre aquela multidão, a qual respeitosamente encontrava-se a uma distância de uns dez passos atrás dele; então disse-lhe:
- Diga-me, Domingos: sendo tu o mais jovem de quantos te seguem e de quantos morreram em nossas casas, por que és tu quem vai à frente deles e os precede? Por que és tu que fala e eles calam?
- Eu sou o mais velho de todos.
- Não – repliquei -, muitos são mais velhos do que tu.
- Eu sou o mais antigo do Oratório (7) – repetiu Domingos Sávio – porque fui o primeiro a deixar o mundo e passar à outra vida. Ademais, legatione dei fungor.(8)
Essa resposta indicava-me o motivo da visão. Era o embaixador de Deus.
- Então – disse-lhe – falemos daquilo que, agora, mais nos importa.
- Sim, pergunte-me logo o que desejas saber. As horas estão passando, e poderia acabar o tempo que me foi concedido para falar-te; e não poderias ver-me nunca mais.
- Segundo parece, tens algum assunto de suma importância a comunicar-me?
- Que teria a dizer-te eu, mísera criatura? – disse humildemente Domingos. – Do alto recebi a missão de falar-te e por isso vim.


São Domingos Sávio fala sobre os salesianos
- Assim – exclamei – fale-me do passado, do presente e do porvir do nosso Oratório. Fale-me de meus queridos filhos, fale-me da minha Congregação.
- Com respeito a esta, muito teria a comunicar-te.
- Conte-me, pois, o que sabes, o passado...
- O passado recai todo sobre ti.
- Cometi alguma falta?
- Quanto ao passado, digo-te que a tua Congregação já fez muito bem. Vês lá embaixo aquele número incontáveis de jovens?
- Vejo-os – respondi. – Quantos são! Que felicidade há em seus rostos.
- Olha o que está escrito à entrada do jardim.
- Leio-o. Diz: Jardim Salesiano.
- Pois bem – prosseguiu Domingos – todos eles foram salesianos, ou foram educados por ti, ou foram salvos por ti ou por teus sacerdotes ou clérigos, ou por outros que encaminhaste pela via de sua vocação. Conta-os, se podes. Seu número, entretanto, seria cem milhões de vezes maior se maior tivesse sido tua fé e a confiança no Senhor.
Lancei um suspiro, sem saber o que responder a tal censura; contudo disse para mim mesmo: No futuro procurarei ter esta fé e esta confiança. Depois lhe disse: E o presente?
Domingos me apresentou um magnífico ramalhete que tinha na mão. Havia nele rosas, violetas, girassóis, gencianas, lírios, sempre-vivas e, entre as flores, espigas de trigo. Ofereceu-mo e disse:
- Olha!
- Vejo mas não entendo nada.
- Dê este ramalhete a teus filhos para que possam oferecê-lo ao Senhor quando chegar o momento; procure que todos o tenham; a ninguém falte nem se o deixe tirar. Tenha a segurança de que com ele terão o bastante para ser felizes.
- Mas o que significa esse ramalhete de flores?
- Consulta a Teologia; ela te dirá e te dará a explicação.
- Estudei a Teologia, mas não saberia como tirar dela o significado do que me apresentas.
- Pois tens estrita obrigação de saber tudo isso.
- Vamos, acalma minha ansiedade, vamos; explique-o tu.


As virtudes e a Porta do Céu
- Vês estas flores? Representam as virtudes que mais agradam ao Senhor.
- Quais são?
- A rosa é o símbolo da caridade; a violeta, da humildade; o girassol, da obediência; a genciana, da penitência e da mortificação; as espigas, da comunhão freqüente; o lírio indica a bela virtude da qual está escrito: erunt sicut angeli dei in caelo (9) – a castidade. E a sempre-viva significa que essas virtudes devem durar sempre, e simboliza a perseverança.
- Pois bem, querido Domingos: Tu, que durante a tua vida praticavas todas essas virtudes, diga-me: qual foi a que mais te consolou na hora da morte?
- Que pensas que possa ser? – respondeu Domingos.
- Foi talvez ter conservado a bela virtude da pureza?
- Não é somente isto.
- Alegrou-te talvez ter tranqüila a consciência?
- Isto é bom, porém não é o melhor.
- Acaso terá sido o teu consolo a esperança do Paraíso?
- Tampouco.
- Então o que será? O haver entesourado muitas obras boas?
- Não, não!
- Então, qual foi teu consolo naquela última hora? – lhe disse entre confuso e suplicante, vendo que não conseguia adivinhar.
- O que mais me confortou no transe da morte foi a assistência da poderosa e amável Mãe do Salvador. Diga-o a teus filhos; e não se esqueçam de invocá-La em todos os momentos de sua vida. Porém... desperta-te, se queres que possa ainda responder-te.


Com relação ao porvir...
-...Com relação ao porvir, o próximo ano de 1877 terás que sofrer uma grande dor; seis mais dois dos que te são mais caros serão chamados por Deus à eternidade. Consola-te, porém, pois serão transplantados do deserto deste mundo aos jardins do Paraíso. Serão coroados. Mas não temas. O Senhor te ajudará e te mandará outros filhos igualmente bons.
- Paciência, e quanto ao que se refere à Congregação?
- Quanto ao que se refere à Congregação, saiba que Deus te prepara grandes acontecimentos. No próximo ano surgirá para ela uma aurora de glória tão esplêndida, que iluminará, como um relâmpago, os quatro cantos do mundo; do oriente ao ocidente, do meridiano ao setentrião, está preparado a ela uma grande glória. Tu deves procurar que o carro no qual vai o Senhor não seja desviado pelo teu para fora de suas vias nem de seu caminho. Se teus sacerdotes o conduzirem bem e souberem tornar-se dignos da alta missão que se lhes confiou, o futuro será esplêndido e infinitas as pessoas que salvarás, sob a condição, entretanto, de que teus filhos sejam devotos da Santíssima Virgem e quantos vivem em tua casa conservem a virtude da castidade que é tão grata aos olhos de Deus.
- Agora, gostaria de que dissesses algo sobre a Igreja em geral.
- Os destinos da Igreja estão nas mãos do Criador. O que determinou em seus infinitos decretos, não o posso revelar. Tais arcanos Ele os reserva exclusivamente para Si, e nenhum dos espíritos criados participa deles.
- E Pio IX?
- O que posso dizer-te é que o Pastor da Igreja terá que sustentar ainda longas batalhas sobre esta terra. Poucas são as que ainda lhe restam por vencer. Dentro em breve será arrebatado desta terra, e o Senhor lhe dará a merecida recompensa. Quanto ao mais já se sabe. A igreja não perece... Tens ainda algo a perguntar?
- E quanto a mim? – disse-lhe.
- Oh, se soubesses por quantas vicissitudes ainda terás que passar! ...Apressa-te, pois me resta pouco tempo para falar contigo.
Então estendi com ardor as mãos para agarrar aquele santo filho; porém suas mãos pareciam aéreas e nada pude tocar.
- Que fazes? – Disse-me Domingos, sorrido.
- Temo que vás embora – exclamei. – Pois, não estás com teu corpo?
- Com meu corpo, não. Recobrá-lo-ei no último dia.
- Mas se não é teu corpo, o que são estas linhas que me fazem ver em ti a figura de Domingos Sávio?
- Olha, quando, pela divina permissão, se vos aparece alguma alma já separada do corpo, apresenta aos vossos olhos a forma exterior do corpo, ao qual animou com todos os traços exteriores se bem que grandemente embelezados, e assim os conserva enquanto a ela não volte a reunir-se no dia do juízo universal. Então levá-lo-á consigo ao Paraíso. Por isso, perece-te que tenho mãos, pés e cabeça mas não podes agarrar-me, porque sou espírito puro. Esta é apenas uma forma exterior pela qual me podes conhecer.
- Compreendo – respondi -; porém, escuta. Ainda uma palavra. Meus meninos estão todos no reto caminho da salvação? Diga-me algo para que possa dirigi-los bem.


A divisão entre o Bem e o Mal
- Os filhos que a Divina Providência te confiou podem dividir-se em três categorias. Vês estas três listas?
E me entregou uma.
- Olhe-as!
Olhei a primeira; encabeçava-a a palavra invulnerati, e tinha o nome daqueles aos quais o demônio não pôde ferir, que não macularam sua inocência com culpa alguma. Eram em grande número e os vi a todos. A muitos já os conhecia, outros era a primeira vez que os via, e certamente virão ao Oratório em anos vindouros. Marchavam íntegros por um estreito caminho, apesar de serem alvos de flechadas, espadadas e lançadas que de todas as partes lhes choviam. Estas armas formavam como que uma cerca ao longo das duas beiras do caminho, e os combatiam e molestavam sem feri-los.
Então Domingos me deu a segunda lista, cujo título era vulnerati, isto é, os que estavam na desgraça de Deus; porém, uma vez postos em pé, já curaram suas feridas e arrependendo-se e confessando-se. Eram em maior número que os primeiros, e tinham sido feridos no caminho de sua vida pelos inimigos que lhes serviam de cerca durante a viagem. Li a lista e os vi a todos. Muitos iam curvados e desalentados.
Domingos tinha a terceira lista. Era sua epígrafe lassati in via iniquitatis, e continha os nomes dos que estavam na desgraça de Deus. Estava impaciente por conhecer o segredo; pelo que estendi a mão; mas Domingos interrompeu-me com presteza:
- Não; aguarde um momento e ouve. Se abrires esta folha, sairá dela um fedor tal, que nem tu nem eu lhe poderemos resistir. Os anjos terão que se retirar enojados e horrorizados, e o mesmo Espírito Santo sente náuseas pela horrível hediondez do pecado.
- E como pode dar-se isto, sendo Deus impassível? – interrompi.
- Sim; porque quanto melhores e mais puras são as criaturas, tanto mais se aproximam dos espíritos celestiais; e, ao contrário, quanto pior e mais desonesto e soez é alguém, tanto mais se afasta de Deus e de seus anjos, os quais, por sua vez, se apartam dele, que se converteu num objeto de náusea e repulsa.
Então me deu a terceira lista.
- Tome-a – disse-me – abre-a e aproveita-te dela para o bem de teus filhos; porém não te esqueças do ramalhete que te dei; que todos o tenham e o conservem...
Dito isto, e depois de entregar-me a lista, retirou-se no meio de seus companheiros.
Abri então a lista; não vi nome algum, porém instantaneamente foram-me apresentados de um só golpe todos os indivíduos nela escritos, como se, na realidade, eu visse suas pessoas. Com quanta amargura os contemplei! Conhecia a maior parte deles e pertencem ao Oratório e a outros colégios. Quantos desses parecem bons, e até os melhores dentre os companheiros, e contudo não o são!
Quando abri a lista, difundiu-se nos arredores um fedor tão insuportável, que imediatamente me vi assaltado de acerbíssimas dores de cabeça e de umas aflições e náuseas tais, que acreditava estar morrendo. Obscureceu-se o ar, desapareceu a visão, ziguezagueou um raio que iluminou a estância, e reboou um trovão no espaço, tão forte e terrível que me despertei sobressaltado.
Aquele fedor penetrou nas paredes, infiltrando-se nas minhas roupas, a tal ponto que muitos dias depois eu ainda sentia aquela pestilência. Agora mesmo, só com a recordação me vêm náuseas, sinto-me sufocar e se me revolve o estômago.
Em Lanzo, aonde me encontrava, comecei a perguntar, ora a um ora a outro; falei com alguns jovens e pude certificar-me de que o sonho não me havia enganado. É, pois, uma graça do Senhor, que me deu a conhecer o estado de alma de cada um de vós, meus filhos; mas disto nada direi em público. Aproveitai, pois é para o vosso bem que o Senhor me envia esses sonhos.


(“Bibliografia y Escritos de San Juan Bosco” – BAC – págs. 654/663).

NOTAS
1) – Chamam-se Novíssimos do homem tudo o que ocorre como mesmo ao final da vida: morte, juízo particular, juízo universal, céu, inferno e purgatório.
2) – “quod bonum esse tenete”, isto é, retendes apenas o que é bom.
3) – A Deus, toda honra, toda glória, Deus Pai Onipotente. Criador, pelos séculos dos séculos, que era, que é, e que virá a julgar os vivos e os mortos nos séculos dos séculos.
4) – Apoc. 7, 14: Estes são aqueles que vieram da grande tribulação, lavaram seus vestidos e os embranqueceram no sangue do Cordeiro.
5) – Eis que são virgens e os que assim se tornaram pela penitência.
6) – Eles são como os anjos de Deus no céu.
7) – O Oratório, como era chamado a casa onde Dom Bosco convivia com os meninos.
8) – Quer dizer que se apresenta como “embaixador de Deus”.
9) – Eram parecidos com os anjos do céu.


B) Visão mui prodigiosa do Paraíso celeste


Visão prodigiosa que a Venerável Madre Ana de Santo Agostinho, religiosa do Carmelo Reformado, teve da glória que os bem-aventurados possuem no Céu


Para eu ficar com paz de vida e entendimento, me remediou a Divina Misericórdia com fazer-me a mercê que me fez. A qual foi achar, sem saber nem imaginar como, que desde este pego de misérias, me haviam levado ao Céu onde me parece que à alma e suas potências (havendo estado de antes oprimidas e soterradas com a vista do inferno e como em tal lugar e com tal pena e trabalho) se lhes deu um novo esforço, e parece que haviam desafogado a minha alma . A qual com grande ânsia se abalançou e entregou ao gozo daquela glória de Deus: aonde estava com grande admiração de ser ver fora de tal cativeiro e logo com tanta felicidade. Da qual não sei se acertarei dizer alguma coisa, por ser uma matéria tão fora de minha capacidade e de meu curto entendimento para falar nela e tão falta de razões. O Senhor (cujo é tudo) cumpra por mim esta obediência.
Fui levada (como disse) ao Céu, que o havia bem mister. Onde vi o que não saberei referir como o sente minha alma: direi o que souber significar. Vi que me puseram em uma grandíssima cidade mui resplandecente e cristalina, mui adornada de grandes riquezas e de jardins belíssimos e formosas flores com suavíssimo cheiro. As ruas todas eram calçadas de pedras preciosas, que as de cá são em sua comparação como de terra. Muita harmonia e diferenças de músicas, com uma ordem e concerto, enfim como no Céu. E nesta cidade, digo, não lhe vi fim; e o princípio por onde havia entrado nunca mais o vi, ainda que minha alma com atenção o queira alcançar. Seu adorno, decência e majestade, eram todos aqueles espíritos gloriosos, todos por sua ordem. Minha alma pôs a vista naquele soberano Princípio e Fim de toda a Bem-Aventurança: e tendo-a fixo naquele preciosíssimo peito, via nele todos os bem-aventurados de toda a glória, de maneira que não tinha para que a mudar, nem variar de umas partes a outras, como cá sucede na multidão de objetos formosos e admiráveis: porque, como digo,vi aquela suma grandeza, poder e bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo nosso bem, sentado à mão direita de seu Eterno Pai e sua formosura, beleza, resplendor e glória suprema, assim como é, de onde procede toda a dos bem-aventurados, como fonte copiosíssima, de onde nascem aqueles raios de vida eterna: assim quanta glória têm os bem-aventurados lhes nasce e lhes é repartida por esta soberana fonte, em quem está toda em supremo grau e muita mais do que se pode comunicar a outra nenhuma criatura, senão a sua Majestade, que sendo homem é verdadeiro Deus e uma das três Pessoas da Santíssima Trindade, em quem está toda a glória e bem-aventurança encerrada, comunicando-se entre as três Divinas Pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, que todas é um só Deus verdadeiro, cuja essência me não foi concedida ver; que e nenhum mortal se concede vê-la, enquanto vive. E assim nisto passou por mim o que direi.


Visão do esplendor da Humanidade Santíssima do Redentor
Estando minha alma gozando da vista gloriosíssima da Humanidade Santíssima de nosso Redentor e da amável presença de sua Mãe Santíssima e toda aquela máquina de formosura e glória de todos os bem-aventurados, sentia uma sede e ânsia amorosíssima de ver a Essência Divina da Santíssima Trindade, sentindo minha alma que não possuía tudo o que havia naquela bem-aventurança. E assim abalançando-se a alma a buscar aquele tesouro, de quem lhe dava uma clara notícia, se reportava e detinha a vista na Santíssima Humanidade, sem poder passar mais adiante; à maneira de quem quer olhar para o Sol, que não é possível insistir com a vista, pela fraqueza dos olhos, senão que a grandeza do resplendor lhos faz cerrar, conhecendo que aquela luz é superior à sua capacidade. E assim na terra bem vemos o sol e sua claridade e formosura, sendo-nos suave e agradável à vista: mas se queremos ver de onde nascem aqueles raios, não é possível. A este modo a minha alma podia ver o Sol na terra soberana da Santíssima Humanidade, podendo gozar sua beleza e formosura, e luz amável. E querendo ver de onde procedia, não lhe era concedido, nem possível à sua capacidade.
Também direi outra comparação, que não é minha, senão que ma puseram, quando minha alma passava pelo que vou referindo. Que assim como, ainda que temos notícias e conhecimento das almas e sabemos que enquanto os corpos têm vida, estão neles dando-lhes ser, regendo seus membros, para que possam usar de suas ações, não nos é possível vê-las em si mesmas, por serem espirituais; e vemos somente os corpos, em que estão infundidas, e neles as notícias das almas, que delas não alcançamos a ver mais. Assim também, ainda que minha alma via raio e resplendor e notícias da Essência Divina e da alteza da Santíssima Trindade, se me cifrava tudo em ver somente a Humanidade Santíssima do Filho; que a visão beatífica, de que gozam os bem-aventurados, não se nos concede de lei ordinária enquanto vivemos. E esta verdade podemos conhecer pelo que passou em todas as ocasiões, que Nosso Senhor deu notícias de sua Divindade: que quanto ao objeto da vista, era somente a Sacratíssima Humanidade do Filho. Porque quando o Senhor se transfigurou no monte Tabor, ainda que os Evangelistas dizem que os Apóstolos ouviram a voz do Pai não dizem que o viram, senão só a Nosso Redentor com grande resplendor e claridade. E quando o glorioso Santo Estêvão diz que viu os Céus abertos, não diz que viu a Essência Divina, senão a Jesus sentado à mão direita da virtude de Deus. E por este modo de falar não se há de entender que está sentado, senão que tem o lugar da mão direita do Pai a nosso modo de falar. Também na vinda do Espírito Santo, não escrevem os Evangelistas que os Apóstolos viram o Espírito Santo, senão as notícias. Assim (como tenho dito) não via eu senão as notícias da Essência Divina, cujos divinos raios reverberavam na Sagrada Humanidade, em quem só se mostrava , para podê-la ver e ver a glória e resplendor que procedia da Essência Divina. E vi que por um modo maravilhoso, reservado somente para sua imensa e suma sabedoria, se repartia a glória a todos os bem-aventurados, da maneira que direi.
Vi que do soberano peito de Nosso Senhor Jesus Cristo saíam grande número de raios de luz formosíssima e se repartiam a todos os bem-aventurados, enchendo-os de glória e dando a cada um os graus conforme as virtudes que na Terra tinham obrado. Direi uma comparação disto, segundo alcançar meu curto entendimento. Há umas fontes de maravilhoso artifício, que têm grande número de canos, que lançam a água, uns em maior quantidade, outros não tanta; e uns vêm a lançar mais perto da fonte, outros mais de longe, conforme quis e dispôs o mestre, ou artífice da fonte, que governa a chave e harmonia dos canos, repartindo-os à sua vontade. E ordinariamente estas tais fontes têm seu princípio de um rio caudaloso.
Assim daquele grande mar, ou daquele caudalosíssimo rio soberano e infinito da Santíssima Trindade, nasceu a fonte amabilíssima da Sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, cujo artífice é o Espírito Santo. E assim como esta fonte de águas vivas repartiu seu preciosíssimo sangue a toda a sua Igreja em geral e em particular, a cada uma de todas as almas fazendo-nos herdeiros de sua glória, assim as está repartindo a todos no Céu em geral, e em particular a cada um de todos os homens bem-aventurados. E pelo ser em mais alto grau sua Santíssima Mãe, Senhora e amparo nosso e a mais eminente em todas as excelências e virtudes de quantas criaturas houve, nem haverá, abaixo de seu santíssimo Filho, é a que mais copiosamente recebe glória daquele soberano peito, comunicando-lhe altíssimo amor.


Nossa Senhora, na Hierarquia celestial
E vi que o Filho de Deus e sua santíssima e amabilíssima Mãe, se estavam olhando com uma vista de sumo agrado, com que se gozam e comunicam sem ruído de palavras. E como a Imperatriz Soberana, a tem o Rei do Céu à sua mão direita; e Ela é a que mais participa da Visão Beatífica e glória da Santíssima Trindade. E isto quem deixará de o crer facilmente , pois na terra encerrou a segunda Pessoa em suas puríssimas e santíssimas entranhas? E também vi que esta soberana Rainha do Céu, Mãe e Advogada dos pecadores, a que é toda cheia de misericórdia e princípio de todos nossos bens: vi, digo, que está pedindo com grandes veras pelos pecadores; e que seu Santíssimo Filho não lhe nega suas justas e piedosas petições, antes aumenta em seu piedoso coração a caridade e amor, para que nos ampare e rogue por nós outros. A glória, beleza e formosura desta nossa amabilíssima Senhora não se pode significar. Está sua alma e corpo cheio e cercado de grandíssimo resplendor, claridade e grande glória, que em sua comparação o Sol e a Lua e quanto há dotado de formosura, é escória e sombra e desaparece. Está esta Senhora de minha alma rodeada de coros de virgens e os anjos a festejam com diversas e suaves músicas: e todos os bem-aventurados, com grande música e maravilhoso concerto A louvam e servem como Rainha. E me pareceu, que com cada petição que esta Senhora fazia a seu próprio Filho por nós outros, lhe aumentava a glória acidental e que Ele com os raios Divinos, que de seu sacratíssimo peito saíam, estava alimentando a sua santíssima Alma e aformoseando-a de modo que verdadeiramente é sua beleza tanta, que todos os bem-aventurados com muitos quilates lhe não chegam. E seus raios e resplendor é tão avantajado, que todos os que têm os Santos e demais Espíritos Divinos, em sua comparação parecem uns pequenos raios de luz. E vi que se pareciam notavelmente o rosto do Filho de Deus e o de sua Mãe Santíssima. E vi o amor que esta santíssima Senhora está mostrando e manifestando com um olhar amorosíssimo aos que nesta vida foram humildes, puros e obedientes, três virtudes tão propriamente suas; e lhes faz particulares mercês, e mais particulares aos que tiveram pureza na alma e no corpo. Está esta misericordiosa Senhora nossa desejando fazer-nos mercês e ter amigos, para que lhas peçam e que acudam a Ela, como a Mãe em todas suas necessidades para remediá-las. Ditosos nós outros, pois esta grã rainha nos ampara e cuida tanto de nosso bem. Amemo-La muito e procuremos fazer sua santíssima vontade, que é que sejamos bons e como seu Filho nos ensina e nos manda, tudo para bem nosso. Bendita seja tal Mãe, que se não despreza de o ser nossa, sendo-a do Rei dos Céus, que como tal é servido de todos aqueles exércitos celestiais, cujo trono vi que estava adornado com os levantados coros de Serafins e Querubins, que sem cessar lhe estão dizendo e exclamando aquele motete do Céu: Santo, Santo, Santo Senhor Deus dos exércitos. Estes espíritos Divinos dos Querubins e Serafins são muito mais levantados que os Anjos; porque estão mais perto de Deus e participam mais de sua Divina Majestade e lhes alcança mais seu resplendor. E assim são os mais gloriosos e estão inflamados e acendidíssimos no amor de seu Criador, que sempre estão vendo e louvando com altíssima e suavíssima música. Sua formosura e beleza destes Divinos Espíritos é tão grande que a não poderei explicar: e assim basta haver dito, que participam tão de perto da de Deus, que é de onde procede toda, e que está dando ser a toda a glória e beleza do Céu Grande é a que tem as hierarquias dos Anjos; que os vi todos postos e repartidos em seus coros com maravilhoso concerto e galharda compostura e ordem, segundo os seus graus e todos cobertos daquele resplendor Divino, que procede de Deus, a quem sempre e para sempre estão louvando, que o têm por ofício e lhe estão dando suaves e admiráveis músicas. Vi os que eram da guarda das almas que estão no Purgatório, que depois de haver cuidado delas em sua vida, as consolavam do tempo que lhes durava o Purgatório e com grande caridade e diligência as alentavam e pediam aos Santos rogassem a Deus por elas. E não deixam sem cessar de exercitar seu ofício, até que as apresentam à Divina Majestade: e então dão mostras de ficarem com mui particular gozo e alegria, por haverem oferecido sua obediência a seu Senhor. Assim me pareceu que os Anjos fazem ofício de Marta e Maria: e tudo quanto fazem não é com ruído algum; que naquela soberana cidade não se ouvem senão suavíssimas músicas e grande quietação e sossego como em presença de tão grande Senhor.


Apóstolos, Evangelistas, Doutores, Patriarcas, Profetas e Mártires
Vi que depois da Mãe de Deus, Rainha e Senhora nossa, estão mais perto de Deus os coros dos Apóstolos e Evangelistas e o dos doutores, patriarcas e profetas, muito mais avantajados em glória que os mais bem-aventurados e santos e com mais maravilhosa ordem e compostura, claridade e resplendor, e músicas mais levantadas e sonoras; e também têm particular glória pela luz que deram à nossa Santa Madre Igreja, e pelas muitas almas que por seu meio gozam daquela eternidade, na qual se manifesta isto muito claramente. E parece que os mais bem-aventurados lhes reconhecem um agradecimento mui particular por este benefício, achando-se todos obrigados e gozando da parte que de sua doutrina lhes alcançou. E bem lho gratifica aquela soberana fonte de água viva de onde participam com tanta abundância da corrente de suas misericórdias, que os sinala sua Majestade, em lhas fazer mui particulares e em colocar tão perto de seu trono real. Sua formosura e beleza é muito grande e ostentam galhardas e misteriosas insígnias de suas vitórias; e mui particulares, os que exaltaram e defenderam nossa Santa Fé Católica e os que mais luz deram à Igreja Católica nossa Mãe Santíssima.
Vi aqueles coros felicíssimos dos mártires, com uns resplendores de glória maravilhosíssimos, mui vitoriosos e com grande alegria, que é justo prêmio da que levavam quando iam a dar as vidas por Nosso Senhor. E sua Divina Majestade dando-lhes aquele cento por um, que lhes prometeu, os honra com grandes e particulares graus de glória, que abaixo dos que tenho dito são os mais levantados; porque lhes repete o soberano Artífice mui formosos canos da fonte, onde tinham banhado suas estolas, e o soberano Cordeiro estima em muito aos que dão a vida por seu amor puramente. E havendo-lhes sua Majestade enxugado as lágrimas, já neles não há tristeza, nem luto, nem clamor, senão glória crescidíssima; e como batalharam legitimamente, suas coroas são vistosíssimas e cada um mais particularmente brilha e resplandece conforme foi seu martírio; como se foi degolado, ostenta colar de grande preço e resplendor; se foi apedrejado, no lugar das pedradas resplandece com especial formosura; e a este modo em todos os demais. E quando lhes forem reunidos seus corpos será também maior a sua glória. Mostra Nosso Senhor amá-los mui particularmente. E assim é grande ventura dar esta vida breve por aquela eterna à vista de Deus.


As Virgens e os Confessores
Vi os coros formosíssimos das virgens e confessores, com grande compostura e concerto e com admirável beleza e claridade, particularmente as virgens, que no mundo tiveram pureza na alma e no corpo; porque em proporção dela é também mais insigne esta formosura e mais clara esta luz. Têm açucenas por insígnias, mui engraçadas e de fragrância suavíssima e palmas mui vistosas. Sempre estão dando a nosso grande Deus perpétuos louvores, como a quem é devida toda a honra e glória; do que ali há mui patente conhecimento. Seus cânticos são de sumo agrado e consonância para seu amabilíssimo Esposo, que já as coroou com as grinaldas, que lhes tinha preparadas desde a eternidade e para a eternidade. E sua Divina Majestade lhes dá especial prêmio pela sua pureza, que é ser dela visto e gozado mais clara e copiosamente e estarem cercando a sua Mãe Santíssima, como a autora da pureza, a cuja frescura se criaram estas vivas flores. Para que nos ensine a tê-la e conservá-la, nos convém amar e servir com todas as veras a esta grã Senhora e procurar haver esta preciosa margarida, que é tão do gosto de Nosso Senhor e de sua Santíssima Mãe e Senhora e Advogada nossa.


As ordens religiosas
Vi a todas as Religiões com muita ordem e fazendo a coros o ofício, que nesta vida exercitaram, dos louvores de seu Criador. E estas almas bem-aventuradas resplandeciam mais umas que outras, manifestando-se nisto haver-se sinalado mais em cumprir suas obrigações mais perfeitamente e em haver tido mais pronta obediência e haver estado no ofício Divino com mais presença de Deus, reverência e amor. Estão todos por seus lugares, como disse; e os fundadores, que instituíram as Religiões, muito mais acima e com mais resplendores e glória que os súditos. E eles pareciam lhes davam graças e se lhes mostravam agradecidos por haverem sido causa de que por seu meio conseguissem tão grande bem. E assim vi a nossa Santa e amada Madre Teresa de Jesus com mui grande glória e formosura. E vi que estava dando à Mãe de Deus e Senhora nossa um ramalhete de diversas flores mui formosas e belas, significando que lhe apresenta e oferece todas aquelas almas. A Virgem Santíssima as tomava, olhando para nossa Santa Madre Teresa de Jesus com muito agrado. E vi que a Mãe de Deus e Senhora nossa, como o é de nossa sagrada Religião, tomando aquele ramalhete o dava a seu Santíssimo Filho. E pois sua Divina Majestade e sua soberana Mãe amaram e amam tanto a nossa Santa Madre e Fundadora Teresa de Jesus e lhe têm feito tantas e tão grandes mercês, reconheçamos seus filhos, a que Nosso Senhor nos fez em que o sejamos. E estimando-o em muito, demos a Nosso Senhor muitas graças. E a regra, constituições e obrigações, que com tanto trabalho e cuidado seu nos adquiriu e deixou, lhe faremos muito serviço em procurar guardar com veras e perfeição. Que sendo o bem para nós outros, será para a Santa de muito gosto e glória acidental. E como bons filhos procuremos imitar suas heróicas virtudes e em particular a da obediência, que nesta grande Santa Madre nossa resplandece. Mostrou-me mui particular agrado e a minha alma causou mui grande gozo e glória o vê-la, que gozava de tanta, porque no tempo santo que viveu, a amai mui enternecidamente.


As demais almas dos Bem-aventurados
Vi todas as almas dos bem-aventurados com uma formosura, claridade e resplendor, que punha admiração; todas com admirável mostras de gozo, que possuíam, e com agradável concerto. Vi a meu pai e a minha mãe e os conheci claramente: e bem se deixa ver que o gozo e consolação que minha alma recebeu e o agradeci muito a Nosso Senhor que mos deu por pais. E desde então me durou a dar-lhe a sua Divina Majestade particulares graças, pela glória que vi que possuíam, dada de sua misericordiosa mão. E vi que tinham alguns particulares graus por algumas licenças que me tinham dado para fazer algumas obras do serviço de Nosso Senhor. E isto me dava sua Majestade a entender por uma mui clara e particular luz: e eles me davam também demonstração disto, mostrando-me muito agrado e amor. Causa-me grande consolação todas as vezes que o recordo e quanto vejo que tenho diante da Majestade de Deus Nosso Senhor tão bons intercessores e que com tantas veras rogaram por mim. Seja Nosso Senhor louvado.
Nesta soberana cidade, tão adornada e enriquecida com tantas e tão preciosas margaridas, como o luzeiro delas é o soberano Cordeiro Jesus Cristo, com cujos raios ilustra a todos os bem-aventurados, reverberando neles, e enlaçando-os com aquele amor paternal com que os remiu, é tão agradável o resplendor e formosura que a todo o Céu banha e esclarece, que está como uma peça inteira, ou grande sala, toda de cristal, que estivesse sentada sobre ouro finíssimo e lhe desse muito em cheio o Sol, porque o de Justiça a enche de soberana luz. E ali nenhuma sombra há, nem pode haver, não só das almas, pois são espíritos que ainda não têm a companhia e união de seus corpos, senão que ainda os de todos os bem-aventurados quando estiverem juntos, nenhuma sombra poderão fazer naquela região de luz. E digo isto porque ouvi dizer a um letrado que os corpos dos bem-aventurados terão ali sombras. E não me espanto que ainda que haja letras e sabedorias, ignorem alguma coisa da imensidade de Deus, cuja grandeza e Majestade indivisível, como sua e em quem está toda a bem-aventurança, é tão sobre a nossa imaginação e capacidade que línguas de Serafins não bastariam para declará-las cabalmente. Que como este Senhor é infinito em seus bens e glória, infinitos são estes e não se podem numerar, nem compreender: quanto menos poderei eu, bichinho ignorante, falar desta matéria e referir o que vi?


(Obras do Padre Manuel Bernardes – vol. I – “Pão Partido em Pequeninos” – págs. 95/105).




C) Em Pleno Céu


Amélia Rodrigues


Noite de Sábado Santo. Passavam grupos na rua, cantando, sob as ondas do luar glorioso que argentava os tetos, as folhagens das árvores, a roupa clara dos transeuntes.
Reclinada numa “chaise longue” , em minha modesta saleta, contemplava eu o pedaço do firmamento que a janela emoldurava e onde corriam, de vez em quando, flechas de foguetes que explodiam caindo em lágrimas de luz.
Meditava na grandeza daquela noite, no assombro da ressurreição de Jesus; imaginava o Mestre no túmulo... e depois... a pedra estalando ... os guardas fugindo... e Ele novamente vivo a conversar com os seus amigos, como se nunca houvesse passado pela sepultura.
Pouco a pouco, não sei como nem porque, desapareceu-me da vista o quadro da janela por onde o luar jorrava na saleta; extinguiram-se as cantigas de rua, os ruídos da noite, e as minhas idéias tomaram outro rumo.
Reparei que ia subindo, nuvens acima, sobre largos degraus cor de leite, muito macios.
Em torno, o espaço misterioso, de azul escuro ponteado com estrelas de ouro; em cima, brandíssima alvura, que abobadava o firmamento como neblina de prata.
E eu subia a escadaria branca e veludosa; subia ligeira, para chegar depressa lá no alto, onde os degraus imergiam na neblina argêntea, penetrando no ignoto.
Alfim cheguei. Enorme e luminoso pórtico, ao centro de imenso “atrium”, parecia convidar-me a entrar.
- Onde estarei eu? N’algum palácio encantado?... pensava com espanto.
Formosos peristilos, ,em colunas de irisada opala e tetos em ogivas elegantíssimas, prolongavam-se, a perder de vista, formando galerias sem fim. Por toda parte, envolvendo tudo, difundia-se uma rósea claridade tranqüila, a claridade mais deliciosa que é possível imaginar; nenhum esplêndido amanhecer na terra daria ao menos a sombra dela.
- Ah!... isto aqui é o céu!... murmurei, estremecendo de inesperado prazer. Chegar ao céu rapidamente e sem trabalho!... Que ventura!...
Imóvel sob o pórtico majestoso, relanceava o olhar ávido e pasmo pela galeria opalina, perscrutando ao longe, desejando entrar lá dentro, quando surgiu diante de mim um velho, sério e belíssimo, para receber-me talvez.
Trajava comprida túnica talar, de tecido luminoso e na mão direita segurava uma grande chave terminada em cruz, que parecia talhada em diamante e ametista. No ponto central da cruz cintilavam três gemas: safira, esmeralda e rubi; um pouco abaixo distingui preciosa pérola cor de violeta.
- S. Pedro, pensei. Ele é quem sai ao encontro das pessoas que chegam ao céu. Pelo menos assim o dizem as lendas. O que é certo é que, sem a sua chave, esta bendita porta não dá entrada a ninguém.
Media-me o velho, de alto a baixo, com olhar paternalmente interrogador. Inclinei-me na sua presença e transpus o luminoso umbral, porque ele nenhum gesto fez para deter-me.
Estava na habitação do mistério infinito!... Que direção deveria escolher? Que vereda seguir?... todas eram tão belas!...
Indecisa, incapaz de orientar-me, perdida no meio daquela floresta de colunas, começava já a pensar que o meu lugar seria ali, porque me faltavam méritos para colocação mais alta.
De repente, porém, duas crianças louras e lindas correram rindo para mim e saltaram aos meus braços, exclamando:
- Titia!
- Meus queridinhos!
Eram Edith e Alberto, dois sobrinhos meus, que morreram antes de completar um ano de nascidos. Como estavam lindos!... Parecia-me, cingindo-os ao peito, que se tinham convertido em névoa impalpável, e entretanto eu os sentia vivos e inteligentes.
- Que felicidade, titia – disseram-me. – Que felicidade!... Já vens para ficar conosco?... Ainda não! Mas consola-te! Nós rogamos sempre ao Senhor por ti, por papai e mamãe, pelos parentes todos... Entra, titia, entra. Seremos os teus “cicerones”. Vem ver como é bonito o céu!...
Eu teria chorado se não estivesse tão traspassada de alegria. Edith e Alberto tomaram-me as mãos, um à direita, outro à esquerda, e levaram-me, embevecida, mas perfeitamente calma e senhora de mim.
Veio-me o desejo de interrogá-los a respeito de tudo quanto via, e perguntei:
- Que significam as pedras preciosas de que é feita chave de S. Pedro?
- Aquilo que tem aparência de minerais terrenos?
- Sim, porém muito mais belos.
- O diamante branco e a ametista roxa são os símbolos das condições exigidas para entrar alguém na bem-aventurança: inocência batismal ou penitência. As pedras de coloração azul, verde e vermelho representam as três virtudes teologais, fé esperança e caridade; a pedra violeta simboliza a humildade. Finalmente a cruz indica que a redenção operada por Cristo é que informa tudo isto, pois sem Cristo o homem não poderia nunca saldar a sua dívida para com Deus e penetrar no céu.
Satisfeita com a explicação, dispus-me a caminhar para a frente.
Diante de nós rasgava-se uma espécie de claustro ou pátio vastíssimo, cheio de crianças que brincavam álacres e travessas, semelhando borboletinhas de ouro em manhã de primavera.
Muitas delas tinham, como incrustadas na carnezinha lirial, grandes rubis de forma irregular: umas no pescoço, outras no peito, outras na ilharga.
- Quem são estes meninos marcados de vermelho?... perguntei.
- São os mártires inocentes, vitimados por causa de Jesus. Tiveram batismo de sangue. As mães choraram tanto naquela ocasião!... Imagina, titia! Algumas quase morrem de dor. Entretanto, se isso não acontecesse, onde estariam agora estas alminhas? Só Deus o sabe...
Deixamos o pátio e tomamos uma avenida lateral.
Grupos e grupos de bem-aventurados iam e vinham, passeando. Suas feições respiravam alegria intensa e paz profunda; nos olhos ressumava-lhes a pureza da alma; sorriam, conversavam, moviam-se, na luminosa atmosfera que os rodeava, com uma elegância e mimo que não possuem os mais distintos e cultivados aristocratas da terra. Mas jovens uns que os outros, gozavam todos a plenitude da beleza da mocidade e do bem-estar.
Estava a contemplá-los com certa inveja, quando outra delícia reclamou-me a atenção. Maravilhosos sons musicais, em delicioso concerto, repercutiram docemente na avenida em que andávamos. Que melodia incomparável! Que execução ideal... Parei, surpreendida, para escutar.
- Queres ouvir de mais perto? – perguntou Edith. Vamos!
Sob os dedinhos de minha gentil condutora correu um reposteiro de lhama e penetramos em riquíssimos salão, cujas paredes pareciam de mármore azul claro, marchetado de ouro polido. Não pude reparar bem, porém sei que havia ali profusão de ornatos magníficos e tão harmoniosos em seu conjunto que mal se destacavam uns dos outros. Milhares de lâmpadas em forma de flores dando luz colorida compunham ramalhetes, grinaldas e recamos originalíssimos, iluminando esplendidamente o recinto, onde aliás notei agradável e perfumada frescura.
Ao fundo extremavam-se logo as figuras do terceto concertante: uma senhora muito formosa e meiga, cantava, acompanhando-se a órgão; um velho, de aspecto nobre, venerando, com a fronte cingida de régia coroa, tocava harpa; um monge franciscano, de hábito escuro e resplandecente ao mesmo tempo, tocava violino.
Junto deles outro personagem erguia a batuta, semelhante a um raio de sol cristalizado, regendo os três com ar de satisfação indizível, porém satisfação inocente, em que não havia o menor laivo de orgulho.
Reclinadas em divãs de ouro, muitas pessoas escutavam, com profundo e manifesto prazer.
- Aposto que conheço estes artistas inimitáveis – murmurei baixinho, ao ouvido de Alberto.
- Pois dize, titia.
- A bela cantora e organista é Cecília, mártir romana; o velho rei é Davi; o religioso é Francisco Solano.
- Acertaste. Executam a “Ave Maria” de Hermann, judeu convertido, depois religioso carmelita. Sabes desse fato?
- Sei, sim. Tenho mesmo algumas bonitas melodias de Hermann.
- Pois ele próprio é quem tem a honra de marcar o compasso aos seus intérpretes neste momento. Repara como está transfigurado pelo gozo da arte... como está feliz!... O auditório atento consta de músicos insignes lá no teu mundo: São Gregório Magno, Palestrina, Allegri, Listz e outros a quem o Senhor fez misericórdia.
Nunca em minha vida ouvira executar com tamanha grandeza, com tamanha expressão, a música de Hermann. Eram as mesmas notas simples e largas, a mesma cadência de frase talvez... mas que vida, que sentimento comunicativo, que doçura, que riqueza de trinos e modulações desconhecidas, inatingíveis pela vocalização em gargantas humanas!
Eu me sentia embriagada de prazer e de admiração, e ficaria ali para sempre, esquecida de tudo o mais, se não me impelissem os meninos para fora.
Enfiamos de novo pelas galerias opalinas, de abóbadas em ogivas altíssimas, cheias de claridade tranqüila.
Uma delas era exterior, cingida por balaustrada de finíssima escultura em alabastro e abrindo para o espaço etéreo, como longa sacada sobre imenso abismo.
Recostei-me ao parapeito, saboreando mentalmente ainda a voz de Cecília, a contemplar a amplidão azul e grandiosa, abaixo de nós, salpicada de astros de ouro, um dos quais seria o nosso planeta. Pontos brancos agitavam-se em certa direção, como cisnes mergulhados em lago profundo.
- São os anjos-correios, explicou Alberto, gracejando. Fazem a correspondência entre o céu e a terra e trazem as almas que sobem.
Levíssimo ruído de passos perto de nós fez-me voltar o rosto. Vinha pela galeria um outro franciscano belíssimo, cuja fisionomia enérgica e suave de apóstolo atraiu-me logo a simpatia e conquistou-me a confiança.
Andava apressado, sorrindo, com as mãos cheias de papeis que lhe saíam abundantes das largas mangas resplandecentes.
Junto à balaustrada parou chamando um anjo de grandes asas prateadas que subia do abismo azul.
- Entrega estas petições ao Senhor, irmão caríssimo. Diz-Lhe que tenha piedade destes pobrezinhos, pelos quais me interesso muito. Insta que ele as despache já pelo amor de Maria.
Interrompeu-se e escutou para baixo, ouvindo certamente alguma voz ao longe que o chamava. Depois respondeu, sempre sorrindo:
- Verei, verei.
E pôs-se a rasgar serenamente alguns “papeis”, cujos brancos fragmentos se desfaziam logo, sem deixar vestígios.
- Por que rasgou estas, Frei Antonio? – perguntou o anjo.
- Porque alguns dos meus caríssimos devotos não sabem o que pedem. Se o Senhor os atendesse lhe faria mal presente. Aqui está, por exemplo, um papelzinho que parece foi molhado de lágrimas inocentes. Pobre menina louca, sonhando rosas... onde somente espinhos o futuro lhe guarda, já sem remédio então!... Vai agastar-se comigo, paciência! Depois me agradecerá. Este outro amigo (e rasgava) pede sentença favorável para um pleito injusto que tem pendente dos tribunais. Indeferido, pois. Alcançarei do Senhor que lhe conceda a força necessária para abandonar bens que lhe não pertencem, a fim de não perder um dia a sua causa... no Tribunal derradeiro! Mas vai, irmão caríssimo!... Sobe logo! Algumas petições há urgentes aí.
Afastou-se o anjo em vôo sutil e eu, sorrindo, cochichei para meus pequenos guias:
- Se aborrecimento houvesse no Paraíso, Santo Antonio já estaria de certo aborrecido.
- Mas, precisamente é esta uma parte da sua felicidade, titia, observou Alberto.
- Afinal de contas, respondi pensativa, extinguir ou, ao menos aliviar as misérias da terra, obter favores para os habitantes do meu vale de lágrimas é, depois da ventura de louvar a Deus, a mais querida ocupação e todos os que triunfaram. Que grande, que belo dogma esse da comunhão dos santos!
Enquanto falávamos, prosseguindo a romagem no palácio eterno, outro admirável salão encontrei no caminho.
Simultaneamente simples e magnificente, dominavam-lhe a decoração linhas e cores menos leves, sem que eu pudesse, também nele, destacar ornatos nem minuciar primores.
Como em vezes outras, o relance do meu olhar por aquela nova fração do paraíso trouxe-me apenas a sensação sintética do grandioso; não podia desembaraçar motivos, descobrir uma aresta, precisar um contorno, perceber um relevo distinto.
Vi todavia perfeitamente, no centro do salão, importante grupo de cidadãos celestes, de aspecto sereníssimo e suave, que deviam ser muito ilustres, sentados, alguns com auréolas brilhantes, quase todos com insígnias sacerdotais. Um reparei que tinha mitra e cruz peitoral.
Pareciam entretidos numa interessante conferência.
- Quem são estes santos? Indaguei de Alberto, baixinho.
- Francisco Sales, Vicente de Paulo, Inácio de Loyola, Afonso de Liguori, Francisco de Assis, Domingos de Gusmão, João Bosco, Champagnat e outros fundadores de ordens e congregações. Quer demorar-se e ouvir o que dizem?
- Porém... não será indiscrição?
Os meninos riram-se.
- Não há segredos aqui, titia, porque não há vaidades, nem intrigas, nem paixões, nem choques de interesses pessoais. Todos vivem duma só vida, dum só afeto, dum só ideal. Escutemos!
A voz dos conferencistas chegava-me aos ouvidos como brando sussurro de abelhas em torno a colméia, não confusa, mas nítida e cristalina, caindo tranqüilamente na placidez do salão. Falavam em italiano, o mais doce italiano que jamais ouvi modulado, uma carícia em forma de palavras; que aliás possuíam toda a sua necessária animação e ênfase, e conversavam sobre a situação das congregações religiosas, perseguidas especialmente na França.
- Que há de ser dos pobres pagãos e selvagens da África e da Ásia... se lhes não mandam nossos missionários, irmão Domingos? – suspirava Vicente de Paulo, fitando nos companheiros os seus olhos calmos e docemente luminosos.
- Um dia a provação passará, como passam todas as tiranias – respondeu pausadamente o fundador dos dominicanos, - Hão de reconhecer finalmente os homens que sem Jesus Cristo não pode haver verdadeiro progresso, nem verdadeiro bem, nem verdadeira felicidade, e chamarão Jesus Cristo na pessoa de seus servos fiéis, depositários da doutrina salvadora, e tudo será restaurado em Jesus Cristo. Eis a minha firmíssima esperança!
- Pedi a perseguição para os filhos, murmurou Inácio de Loyola. A perseguição é o cadinho que depura o ouro.
- E eu ensinei aos meus que a perfeita alegria consiste na privação completa de todos os bens da terra, no completo abandono... na paciência invencível em suportar todos os golpes, todas as injúrias... – gorjeou o Serafim de Assis, cruzando ao peito as mãos, onde os estigmas brilhavam carmesins.
- Não é o religioso perseguido que lastimo (falava agora o Ven. João Bosco) porque sabemo-lo todos, o sofrimento e a morte de Jesus Cristo são a maior aspiração dos seus imitadores. Lastimo a sociedade... o povo ignorante e sempre vítima... lastimo os órfãozinhos desamparados, ah! Coitadinhos! Que não encontrarão mais dedicações desinteressadas, mestres piedosos que os arranquem à voragem do mal!... lastimo os enfermos nos hospitais, os soldados no campo de batalha, os aleijados e os velhos e os leprosos... que não terão mais ninguém a ministrar-lhes as últimas consolações!
Calou-se D. Bosco. Dir-se-ia que na região da ventura eterna acabavam de ecoar as lamentações do profeta plangendo sob os salgueiros da Babilôniae que ligeira nuvem de tristeza escurecia a fronte da preclara assembléia, se tristeza e gemidos pudessem ter ingresso ali.
Levantou então o Bispo de Genebra a veneranda fronte, e com voz pausada e dulcíssima concluiu:
- A Deus Nosso Senhor (todas as cabeças se curvaram) apraz tirar sempre o bem do mal nos segredos de sua infinita sabedoria e vontade. Louvemo-Lo, irmãos queridos, e demos-Lhe graças por tudo quanto faz!
Num gesto sublime de respeito e obediência e amor, aquele punhado de homens eminentes dobrou o joelho e repetiu:
- Louvemos o Senhor por tudo quanto faz!
Houve novamente silêncio, um silêncio solene. Depois a voz comovida e simpática do Patriarca dos beneditinos ressoou nos âmbitos do recinto, num espelho supremo, transbordante de confiança e fervor.
- Porém vamos exorá-Lo, irmãos!... vamos pedir vitórias para a Santa Igreja e constância para nossos filhos... que estão padecendo lá na terra!...
Puseram-se todos de pé, majestosos, como outros tantos reis.
Circundava-os uma espécie de fluido luminoso e nos seus olhares repousava uma paz tão grande que nem o desmoronamento do universo em torno deles poderia alterar.
Penetrada de reverência inclinei-me à sua passagem, mas desapareceram tão súbito que mal dei conta do esplendor que deixavam.
Edith puxou-me pela manga.
- Vem, titia, vem ver mais.
Segui as duas crianças, continuei a andar, e, à medida que me internava nos celestes labirintos o meu assombro crescia. Não lograva ver tudo bem, - já o disse – porque as maravilhas da mansão divina passavam sempre rápidas, mais rápidas do que a projeção duma lanterna mágica. Apenas confusamente distinguia pavilhões, rendilhados, decorações variadíssimas de beleza sem igual, mosaicos rutilando, cintilações de pedras preciosas, altos relevos e cinzeladuras delicadíssimas, cortinas adelgaçando-se em nuvens de gaze... que sei eu?... coisas inenarráveis enfim, tudo traspassado e ponteado de luz em matizes de cores suavíssimas, que nunca me ofuscavam os olhos enlevados.
Agora estávamos num parque delicioso, atopetado de plantas, formando longas alamedas, jardins, pomares, com flores e frutos parecendo feitos de metal brilhante e desprendendo esquisito aroma. Por cima arredondava-se o firmamento azul-claro, recamado de nuvens prateadas e faixas cor de rosa, numa transparência e pureza de tons superiores ao cristal.
O arranjo das plantas obedecia à mais original e encantadora disposição artística. Não eram linhas duras com precisão geométrica dos ajardinamentos conhecidos, era a arte do céu, lembrando aqui e acolá o sabor primitivo da natureza terrena: veludos de relva, grutas de rochas agrestes, moitas de lilazes e dálias e jasmins, entrançamento de ramos finíssimos, arbustos de folhagens multicores, onde gorjeavam passarinhos e volitavam borboletas brilhantes, palmeiras de frondes esmeraldinas, que pendiam como para abraçar as almas numa carícia ideal...
E o sentimento de um afago indefinível, de uma poesia suprema se difundia ali, como aliás em toda parte...
Por entre as cortinas de verdura destacavam-se figuras de mulher, andando com o mais gracioso descuido, muitas delas vestidas de longas túnicas brancas, tendo lírios em redor da fronte misturados á auréola.
Estavam risonhas e coradas, ao tom da luz auroreal que enchia o jardim.
Três me ficavam perto, sentadas em bancos de relva, cada qual mais formosas. Uma tinha o regaço cheio de rosas, outra abraçava um cordeirinho alvíssimo, a terceira tinha um livro aberto na mão e olhava para cima, com o seus olhos negros de espanhola, inspirada, compondo versos belíssimos, que as outras ouviam encantadas.
- Como se chamam estas moças tão bonitas? – perguntei a Edith.
- Dorotéia, Inês e Tereza. As outras são também virgens, algumas mártires. Preparam ramos e hinos para o Esposo, que vão encontrar daqui a pouco.
- Ah! Como são felizes!... suspirei, embevecida e satisfeita com a felicidade delas.
- Muito – volveu Edith.
Saímos. Antes, porém, de deixar o jardim, demorei-me ainda a contemplar a beleza das flores, do firmamento, de coisas novas que eu não Sabia nomear e que me transportavam de admiração, quando vimos surgir na próxima alameda gentilíssimo par. O cavalheiro, de aspecto nobre e um tanto marcial, a senhora, linda, meiga, quase infantil. Caminhava de braço dado, conversando com ternura, em doce arroubamento de alegria tranqüila.
Trajavam como reis; traziam coroas na cabeça e grandes mantos presos aos ombros, porém somente a dama tinha auréola.
Passaram pertinho de nós e ouvimos, mais leve que a roça de plumas e o cair do orvalho, a voz melodiosa da senhora:
- Parece que foi hoje que chegamos aqui!... Não sinto correr a eternidade!... Benditas as lágrimas que chorei! Bendito o burel que vesti! Benditas as humilhações que me infligiram os ingratos!... Ah, Luiz, como Deus é bom!
- Tens razão, esposa minha.Que larga recompensa para tão pouco mérito! Também eu bendigo a cada instante o sacrifício que fiz em deixar a pátria para ir morrer cruzado, sonhando a conquista do sepulcro santo; bendigo a saudade que tive de ti e dos meus filhinhos, isolados na Turquia... Agora tudo acabou e Deus nos tece aqui um ninho de venturas, para sempre; Isabel! ... se soubessem os homens quão superior ao da terra é o amor no céu!...
E lá se foram pela cheirosa alameda, gorjeando o lírio puríssimo, em transportes de gratidão, Àquele que abençoa os santos afetos, mergulhando-os no oceano sem praia do seu divino amor.
Eu tinha nos olhos uma curiosidade ainda não satisfeita, no coração um desejo, nos lábios uma interrogativa que ansiava por soltar, e caminhando, absorvida pelo meu pensamento, espreitava a ocasião de transformá-lo em palavras.
- Quero mostrar-te uma novidade interessante agora, titia – disse Alberto.
- Que tenho eu visto senão novidades interessantes, meu anjinho!... Coisa mais bela ainda?
- Não; apenas diferente.
- Ah!
- Quero mostrar-te um pedacinho do teu planeta.
- Ora esta!... Ver a terra, depois que a gente está no céu, não vale a pena, criança.
- Olha, contudo.
Olhei. Diante de nós havia, efetivamente, um trecho do nosso pobre desterro: montanhas ao longe, uma cidade antiga de construções pesadas com algumas torres... muralhas em roda... campos de oliveiras... carneiros e pastores deitados...
- Que é isto?... – inquiri curiosa, sem compreender coisas alguma. Onde estamos?
- Repara ao lado esquerdo.
- Um estábulo, dois animais, duas pessoas e...
- Não percebes?
- Creio que não.
- Vês o local do nascimento de Jesus.
-Ah!
Era, de fato, uma surpresa nova. Os meus dois guiasinhos riam-se, com verdadeiro gosto infantil, travessamente divertidos com a minha admiração. Dei alguns passos á frente, em direção à gruta, para aproximar-me da família santa, cujas formas vagas percebia apenas junto da manjedoura.
- Espera aí, titia!
Voltei-me logo.
- Mas, explica-me, Alberto, explica-me! Estamos em Belém, há 19 séculos passados?
- Estamos simplesmente diante de um quadro.
- Um quadro!
- Sim. Poderias apreciar igualmente milhares de outros, em galerias imensas, representando ao vivo as cenas bíblicas, toda a história da fé cristã e dos santos, padecimentos dos confessores que o Martirológio dá, ou não dá, porque nem tudo se escreveu e se escreve... heroísmos escondidos, que o Senhor somente viu, e quer imortalizados e iluminados agora para glorificar seus servos... Inesgotável é o assunto, bem vês, mas também o palácio de Deus é infinito...
- Trabalhos de Rafael, Dominiquino, Fra Angélico, Giotto?...
- Talvez estes senhores cá estejam, porém não os conhecemos, titia. Nós os pequeninos, gostamos mais de brincar do que ir procurar os mais velhos por aí além. Este “Nascimento”, a “Flagelação”, o “Calvário” e outros, pertencem a um monge humilde, que ficou desconhecido no mundo porque nunca procurou a glória humana e foi esconder debaixo do burel o seu gênio de artista. Nosso Senhor o recompensa dando-lhe aqui não somente os gozos do coração, mas também os gozos da inteligência, com o prazer de criar estas obras-primas, que nenhum pintor da terra igualará.
Realmente! Aquilo que parecia pintura era a própria natureza arrancada de seu lugar e transplantada ao céu... contrastando violentamente com a beleza paradisíaca, mas por isso mesmo mais impressionante.
- Não vejo... a Santa Virgem, nem o Menino. Porque não ressaltam na tela?... interroguei tristemente.
- Não vês?... pois estão aí Jesus, Maria e São José, admiráveis, perfeitos, com as próprias feições que tinham. Tudo aliás nesses quadros é fidelíssimo, coisa que não sucede lá na terra, onde os artistas, para muitas cenas históricas pedem à imaginação quase todos os acessórios de que precisam. Deus lhes concede aqui uma espécie de visão retrospectiva.
Eu não escutava mais o que Alberto dizia. Aquele fato de não distinguir as figuras principais do quadro contristava-me fundamente... Qual seria a razão disso?...
- Vamos ver os outros – continuou o pequeno.
Deixei pender a cabeça, pensativa.
- Para que?
- Desagradou-te a novidade, titia?
- Oh, não!
- Pois então vamos.
Fomos. Devia ser muito admirável o que visitamos, mas eu estava tão distraída, tão preocupada, que em nada mais fixava a vista... olhava tudo sem entusiasmo... porque não via nunca as figuras principais...
De improviso, porém, a minha atenção foi vivamente atraída. Atravessamos uma nova avenida ou galeria surpreendente, belíssima, ainda mais esplêndida e larga que as outras. Que encanto!... que riqueza!... que brilho!...
Não pude conter um grito de pasmo. Depois de haver contemplado tantas maravilhas, senti-me empolgada pela grandeza daquela maravilha imprevista.
No extremo da fileira de colunas desenhavam-se os degraus de longa escadaria refulgente, conduzindo a um outro pórtico vagamente esboçado lá em cima, numa altura que me parecia inacessível. De que eram feitas as colunas, a escadaria, o pórtico? De prata, de pedrarias finas e cintilantes?... Não sei! Guardo apenas a sensação de uma luz de ouro deslumbrante, que jorrava de dentro, em catadupas copiosas, pela abertura imensa do pórtico.
Parei, emocionada. Em face daquela mansão estupenda recordei a idéia... o desejo... voltei para os meninos a articulei, quase a medo, a interrogativa que me fervia no coração:
- E... Nossa Senhora?... onde está?... Desejaria tanto vê-La!...
A estas palavras o rostinho das duas crianças expandiu-se num sorriso de ventura, num resplendor de êxtase. Semelhavam dois botões de rosas lindíssimos, que abrindo se tornam mais lindos.
- Ah!... Nossa Senhora... nossa Rainha!... Ela está lá em cima, junto de Jesus. Vês aqueles anjinhos que sobem ligeiros, acolá, como formados de neve luminosa? Vês que levam nas mãos pequenos cálices, parecendo açucenas fechadas?
- Vejo. Onde vão eles?
- São os mensageiros de Nossa Senhora: vão levar-Lhe os lamentos da terra, o apelo dos pecadores, a agonia dos que sofrem, o gemido, as lágrimas, a prece dos abandonados que A imploram!... Outros descem, não vês? Trazendo nas mãos gotas de luz... descem apressados, dirigem à terra o seu vôo e derramam sem demora no coração dos aflitos o conforto, a resignação, a esperança, que a Mãe de Misericórdia logo, quando por ventura Deus quer dilatar um pouco o dom que pedem.
- E poderemos nós chegar lá em cima... perante o trono da Rainha Suprema... perante o conspecto adorável de Jesus e... da Trindade augusta?
As crianças olharam de repente uma para a outra e ficaram mudas. Compreendi que o meu atrevimento as espantava... e que, ao mesmo tempo, não queriam causar-me pena.
Também eu olhava para elas, sentindo agora não sei que vago enlei e vexame, que não podia definir...
Afinal, Alberto fitou em mim seus olhinhos piedosos e murmurou, como se falasse magoado:
- Titia... não sabemos se isso é possível. Aqui todos vemos o Pai celeste... mas... tu vens da terra, titia... de certo não passaste ainda pelo fogo purificador...
Só então me lembrei de olhar para mim... para minhas vestes rotas e manchadas de pó...
Baixei os olhos e vi no chão, refletindo no polimento das lajes espelhantes, o meu rosto disforme, quase negro.
Achei-me, instantaneamente, miserável: nunca me havia suposto mendiga tão horrenda, tão desprezível!
- Ah, meu Deus!... exclamei, transida de amargura; não posso ainda!... não posso!...
E lágrimas ardentes correram dos meus olhos desenganados; deixei-me cair soluçando no pedestal de uma coluna próxima com a cabeça entre as mãos, envergonhada de mim, das minhas vestes, do meu arrojo... e soluçando fiquei muito tempo...
Quem dera que se abrisse ali, a meus pés, a fornalha de expiação, que me queimasse toda, e me fizesse intensamente sofrer, e destruísse para sempre aquelas manchas odiosas!...
Entretanto, percebi que os meninos se aproximaram, um à direita, outro à esquerda, colocando uma de suas mãozinhas sobre os meus ombros, enquanto com a outra punham-me sobre as faces dois cálices de lírios...
Depois, não sei bem o que houve, não sei dizer o que sucedeu...
Pareceu-me que se produziu um choque, um abalo enorme em todo o palácio celeste... porém abalo sereno, deleitoso, como rápida transição da aurora para o sol, da alegria para o êxtase...
Levantei-me subitamente. Os pequenos tinham desaparecido... eu estava só...
Não tive tempo contudo de lamentar a sua ausência, porque novo espetáculo empolgante e maravilhoso se desenvolvida então.
Intensíssima luz de mil cores reverberou-se nos tetos, nas colunas, por toda a parte... sons de invisível e poderosa orquestra encheram de harmonias o perfumado ambiente... alvejaram asas de anjos...
Procurei esconder-me, fugir... Não pude, não achei caminho. Inumerável multidão de criaturas gloriosas passava pela galeria, subindo a escadaria, numa procissão belíssima, inenarrável, que me tomou de assombro...
Impossível analisá-la. Apenas me recordo que distingui as virgens, de túnicas brancas e grinaldas de rosas e lírios; os mártires, empunhando palmas verdes; os pontífices, sacerdotes, religiosos, reis... que sei eu?... Algumas frontes tinham duas e três auréolas; todos estavam envoltos na luz do ouro que jorrava do pórtico e na luz que eles mesmos irradiavam... imersos na melodia angélica... transbordantes de suprema ventura...
Logo que passaram estes, outra multidão de eleitos chegou e subiu também pela escadaria fulgurante. Vinham de baixo, da região inferior do paraíso... Se bem que não tivessem auréolas, todavia estavam plenos da mesma felicidade que os outros, os grandes santos...
Nesse instante, no fundo da minha alma retiniu a voz do Apocalipse: “E ouvi o número dos assinalados, e foram cento e quarenta e quatro mil assinalados de todas as tribos dos filhos de Israel... E eis aqui uma grande multidão, a qual ninguém podia contar,de todas as nações e tribos e povos e línguas, que estavam diante do Trono e perante o Cordeiro...”
- Meu Deus!... meu Deus!... exclamei fascinada, esquecida já da amarga dor que me fizera chorar. Nunca jamais a terra poderá exibir cortejo tal!... Quem serão estes últimos bem-aventurados?
Senti que me pegavam nas mãos afetuosamente. Eram os meus dois queridinhos, Alberto e Edith, mais contentes, mais lindos que nunca.
- Estes bem-aventurados, responderam com voz extremamente melodiosa, são as colheitas da divina misericórdia... trigo quase todo respigado pelas mãos dAquela que é chamada o Refúgio dos pecadores. Fizeram a penitência final, cumpriram a sua pena temporária, e ei-los, enfim, triunfantes no gozo eterno.
Não pude resistir ao ímpeto veemente, indomável, de meter-me naquela onda, de incorporar-me àquele exército de assinalados...
O último lugar!... o último lugar!... e seria demasiado para mim!... porém eu reclamava esse lugar, era a minha herança!... também eu fora marchada com o Sangue do Cordeiro!...
Sem mais refletir, sob o domínio de uma confiança vivíssima que parecia traspassar cada fibra do meu corpo, segui com ele e subi, leve e ágil... subi céus acima...
Depois... depois... não acerto a contar bem o que vi.
Ela estava lá... num trono que ninguém poderia imaginar... num trono que seria lavrado com os brilhos do sol, se o sol pudesse servir de comparação aos brilhos do empíreo... Ela estava lá deslumbrante, meiguíssima, indescritível, divina, olhando para todos, sorrindo, tão maternalmente atrativa que me dava vontade de aproximar-me e devorar de beijos a fímbria de sua túnica.
- Maria!... Maria!... Maria!... – cantava o meu coração, a saltar no peito, sem poder conter o oceano de doçura que me afogava...
Depois... depois...
Novo deslumbramento... novo êxtase... nova embriaguez...
Abriu-se o Santo dos Santos... fulgurou na altura um arco-íris sem término, como feito de asas flamejantes... um estridor imenso de clarins e aclamações jubilosas retumbou nos confins da Sião eterna, que parecia deliciosamente vibrar até os seus fundamentos... e o Homem-Deus, majestoso, formosíssimo, cingindo ao peito uma grande cruz de ônix resplandecente, com as cinco chagas vermelhas destacando-se na alvura imaculada de sua Humanidade Santíssima – emergiu na glória da Trindade Excelsa.
E todos se prostraram adorando o Rei Supremo... e nos âmbitos do céu Empíreo a prodigiosa orquestra dos anjos e dos eleitos ressoou num cântico sublime.
“Confitemini Domino quoniam bônus: quoniam in saeculum misericórdia ejus.
Alleluia!... alleluia!... alleluia!...
Jesu, tibi sit gloria...
Alleluia!... alleluia!...”
Eu estava absorta, fora de mim... trêmula de respeito, inebriada de amor e alegria.
Pude apenas perguntar, balbuciando, às crianças, que me acompanhavam ainda, na massa da multidão bem-aventurada:
- Como pude subir?... Como posso ver?... Porque estou aqui?...
E os dois anjinhos, num murmúrio mais doce que o suspiro da brisa entre as rosas e o gorjeio dos rouxinóis ao luar, explicaram:
- Subiste até aqui... porque nós levamos tuas lágrimas a Nossa Senhora.


* * * *


Nesse momento senti que alguém me sacudia o braço violentamente... envolveu-me espessa treva e uma voz horrorosa pelo contraste “rugiu” aos meus ouvidos:
- Acorde!... não quer ir à missa das 3 horas?
Sumiu-se repentinamente o paraíso... apagou-se a luz de ouro, desapareceram os meninos e o cortejo, cessou a música celeste... tudo se apagou e perdeu na penumbra da saleta, no bimbalhar dos sinos que tocavam a todo impulso na vizinha igreja, no espocar de girândolas de foguetes...
Esfreguei os olhos ainda sonolentos, sem perceber nitidamente onde estava, e devia ter dito qualquer impertinência, porque a criada, em pé, junto de mim, gaguejou humildemente:
- A senhora pediu-me que não a deixasse dormir... e já está tocando a segunda chamada para a missa das 3 horas...
Ah!... eu estava na terra!... o céu fora-se embora!
Não havia remédio senão acreditar na realidade e dizer adeus à fantasia...
Suspirei desapontada, quase triste. Aquilo fora um sonho simplesmente!... nada mais do que um sonho!... Que pena!... Que pena ter eu que por os pés no chão deste mundo traiçoeiro, lamacento e feio, enquanto que lá em cima tudo era luz e cantos e perfumes e alegrias sem mistura de contrariedades e desilusões!...
- Ergui-me finalmente, a custo, da “chaise-longue”, e olhei para a janela, que emoldurava um pedaço do firmamento, a ver se algum reflexo “de dentro” havia lá. Nada!...
Somente a lua passeava tranqüila e fria no meio das nuvens... somente as flechas dos foguetes subiam ainda, freqüentes, explodindo e caindo em lágrimas de luz...
Na rua os grupos de transeuntes aumentavam caminhando em direção ao templo, trajando roupas claras.
Embrulhei-me na minha capa e saí também, pensando no verdadeiro paraíso, tão formoso, tão desejável, infinitamente superior àquele que me fantasiara o sonho... e do qual diz São Paulo que “nunca os olhos viram e nem ouvidos ouviram o encanto inefável”.
O Paraíso!... o Paraíso!... A vida, com todas as suas riquezas inesgotáveis de gozo de atividade, de perfeição!... Oh, meu Deus!... meu Deus!... chegarei eu um dia ao Paraíso?
Era Domingo de Páscoa, afinal de contas, a festa magna dos que esperam triunfar com Cristo... a festa dos assinalados com o sangue do Cordeiro. Consolei-me!... Não podia por ora realmente incorporar-me à turba de bem-aventurados no céu, ai de mim!... mas podia unir, ,e uni, fervorosamente o coração à igreja da terra, e entoei jubilosa, com todas as forças do meu amor, o canto da Ressurreição de Jesus: “Exultet! Surrexit!... Jesu, tibi sit gloria! Alleluia! Alleluia! Alleluia!”

(transcrito do livro “Do Meu Archivo – Contos e Phantasias” – Livraria Editora Nossa Senhora Auxiliadora – Salvador, Bahia, 1929 – págs. 171/200).